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Forró na brasa

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Campina Grande, final da década de 1940. A intensa vida noturna da cidade refletia os últimos anos de fastígio do comércio do algodão. No entorno do imponente Cassino Eldorado (que o descaso com o patrimônio cultural reduziu a ruínas) diversos estabelecimentos transacionavam outro tipo de mercadoria que não era o “ouro branco, que faz nossa gente feliz e que tanto enriquece o país”, cantado no baião de Luiz Gonzaga e Zé Dantas, o produto que ficou como um dos símbolos da antiga Vila Nova da Rainha.

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Na porta de uma daquelas casas noturnas, um jovem mal saído da adolescência observava atentamente um pequeno grupo musical que ali se apresentava. Um samba que foi tocado impressionou muito o rapaz que, em uma das pausas do grupo, comentou com o cantor: “que música bonita!” e teve a resposta de que a música havia sido feita pelo saxofonista do conjunto. Várias décadas depois do ocorrido, o jovem que depois veio a se tornar um dos grandes compositores da música popular do Brasil, relembrava o episódio em depoimento à Rádio Tabajara:

“Fez? Ele fez a música? Eu não tinha ideia que alguém fazia uma música, eu pensava que a música vinha assim do ar. Ele falou compor, mas eu também não entendia a palavra compor”.

Arquivo Nacional

Naquela época, o rapaz que se chamava Antônio Barros Silva ia semanalmente ao povoado de Queimadas, então distrito de Campina Grande, onde, em 1930, ele havia nascido. Em uma das vezes, em que ele fez a viagem tangendo um jumento resolveu tentar fazer, durante a caminhada, uma música inspirada em um título de um filme que estava passando no Cine Capitólio e que era “Acordes do Coração” (“Humoresque”, direção de Jean Negulesco, com Joan Crawford). Ao chegar a Queimadas, cantou a composição para os seus primos e, ao final, perguntou: “vocês conhecem essa música?”. Ao receber a negativa, respondeu: “Fui eu que fiz”. Aquela seria a primeira das muitas músicas que Antônio Barros iria fazer.

Desde criança, Antônio Barros já demonstrava uma ligação inerente com a música. Gostava de cantar dentro de uma lata vazia para ouvir o som da sua voz. Como não era muito de ligar para as tarefas escolares acabou logo cedo se envolvendo mesmo com a música. Aprendeu a tocar pandeiro e passou a ganhar algum dinheiro tocando na zona boêmia de Campina Grande e, depois, em Patos. Em outubro de 1950, com a inauguração da Rádio Caturité de Campina Grande, foi contratado como pandeirista da emissora, onde permaneceu por quase dois anos.

Em seguida, Antônio Barros se mudou para o Recife com o propósito de ser tornar marinheiro, mas não conseguiu o seu intento porque não tinha o curso primário concluído nem o físico exigido para o ingresso na Marinha. Passou a viver de pequenos biscates, entre eles o de retocador de retratos e conseguiu ser admitido como pandeirista na Rádio Tamandaré. Na mesma época, Jackson do Pandeiro, com quem fizera amizade em Campina, fazia parte do grupo musical de outra rádio do Recife.

Em 1946, a gravação de “Baião” (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira) feita pelo conjunto vocal Quatros Ases e um Coringa introduziu a “música do Nordeste” na cultura de massa do país. Para o historiador Durval Muniz de Albuquerque, autor de “A Invenção do Nordeste e outras Artes”, o baião veio “atender à necessidade de uma música nacional para dançar, que substituísse todas aquelas de origem estrangeira. Daí sua enorme acolhida num momento de nacionalismo intenso”. A partir daquele momento, tendo Luiz Gonzaga como o seu principal intérprete, a música nordestina foi crescentemente tomando conta do mercado fonográfico brasileiro, desbancando o bolero e o samba-canção abolerado que, durante certo tempo, dominaram a programação musical das rádios.

Nos primeiros anos da década de 1950, houve uma grande migração para o Rio de Janeiro, que era o centro cultural e do mercado da música do país, de compositores, intérpretes e instrumentistas nordestinos, aproveitando a grande “onda” do baião e dos ritmos da região. Jackson do Pandeiro, Zito Borborema, Genival Lacerda, Abdias e tantos outros com os quais Antônio Barros convivera em Campina Grande estavam gravando discos e até Marinês, uma jovem cantora que um dia pernoitara na sua paupérrima casa no Recife, também fora para o Rio, onde conseguira um feito extraordinário de fazer um dueto com Luiz Gonzaga em uma gravação. Antônio Barros decidiu que tinha que se mudar para a Capital Federal.

Ao chegar ao Rio de Janeiro, sem dinheiro algum, Antônio Barros foi morar com Jackson do Pandeiro. Logo depois, foi convidado por Luiz Gonzaga para integrar o grupo que o acompanhava. Trouxera do Recife na bagagem algumas composições que começaram a ser gravadas pelos seus conterrâneos. Em 1956, teve uma das suas primeiras músicas gravadas, “Coco Brejeiro”, interpretada por Zito Borborema, paraibano de Taperoá. Em 1957, Genival Lacerda e Jackson do Pandeiro gravariam outras composições suas. Mas, foi em 1959 que Antônio Barros faria o seu primeiro disco, um 78rpm com uma faixa de cada lado em que ele cantava duas músicas de sua autoria (“Xote do Bebo” e “Por ninguém me querer”). Recentemente, Antônio Barros, depois de muitos anos, voltaria a ouvir essas suas primeiras gravações, que ele não as possuía, através de digitalizações que eu lhe enviei e que estão disponíveis no acervo do Instituto Moreira Sales.
Naquele mesmo ano de 1959, Antônio Barros teria os seus primeiros êxitos como compositor, “Baião do Bambolê”, na voz de Jackson do Pandeiro, e “Estrela de Ouro”, grande sucesso de Luiz Gonzaga:

“Reinado, coroa / Tudo isso o baião me deu / Estrela de ouro / No meu chapéu / Roupa de couro e gibão / Como um milagre caído do céu / Fizeram-me rei do baião”.


Arquivo Nacional

Em meados da década de 1960, começou a arrefecer o mercado para a música nordestina. Os sons dos Beatles influenciaram o nascimento do fortíssimo movimento nacional da Jovem Guarda e a Bossa Nova fez surgir uma canção destinada, principalmente, a um público de classe média e universitário. Apesar disso, Antônio Barros, que já adquirira certo conceito como compositor, conseguiu obter vários sucessos naqueles anos difíceis para a música regional, como “Brincadeira na Fogueira”, “Naquele São João” e “Procurando tu”, com o Trio Nordestino, “No balanço do mar” com Marinês, e “Óia eu aqui de novo”, uma música que deu título ao disco de Luiz Gonzaga de 1967 e cuja letra refletia a situação do Rei do Baião naquele momento: “Óia eu aqui de novo […] Vou mostrar pra esses cabras / Que eu ainda dô no couro”.


Nas primeiras gravações de músicas de Antônio Barros chama a atenção o aparecimento de “parceiros comerciais” em algumas composições (como em “Baião do Bambolê”, com Almira Castilho, mulher de Jackson do Pandeiro), prática que se instalou no país desde que a indústria fonográfica começou a se tornar bastante lucrativa, da qual não escaparam nomes como Noel Rosa, Cartola e Nelson Cavaquinho e que foi bem detalhada pelo jornalista e compositor pernambucano Nestor de Holanda em “Memórias do Café Nice”, obra indispensável sobre o assunto. Carlos Marcelo e Rosualdo Rodrigues em “O fole roncou – Uma História do Forró (Zahar, 2012)” relatam que em “Procurando tu”, o primeiro grande êxito nacional de Antônio Barros e uma das músicas mais executadas no Brasil no ano de 1970, aparece nos créditos da composição o nome de um radialista da Bahia que entrou na “parceria” como retribuição pela divulgação da música.

Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello autores de “A canção no tempo vol.2, 1958-1985” colocaram “Procurando Tu” como uma das músicas representativas do ano de 1970, destacando que o xote de Antônio Barros chegou a emparelhar com as músicas de Roberto Carlos nas paradas de sucesso. Os autores contam que a música fora composta por Antônio Barros quando ele trabalhava tocando contrabaixo em um grupo musical de um navio que fazia cruzeiros pela costa do Brasil e inspirara-se na sua mãe que no seu tempo de criança quando não o achava dizia: “Menino, onde é que tu tá? Tou procurando tu”.

Em 1971, um fato mudaria a vida pessoal e artística de Antônio Barros. Em uma viagem a Campina Grande o compositor conheceu Mary Maciel Ribeiro, que todos chamavam de Cecéu. Filha única de um dono de uma mercearia, Cecéu desde criança foi uma ouvinte atenta do que tocava no rádio e colecionava publicações sobre os seus intérpretes favoritos, entre eles o baiano Anísio Silva que ela, aos 9 anos de idade, conseguiu permissão de sua mãe para, acompanhada de uma vizinha, assistir no auditório da Rádio Borborema. Adolescente, começou a ensaiar os seus primeiros rascunhos, mas, como não tinha contatos com o meio artístico, aqueles primeiros ensaios ficavam somente para ela.

No encontro de Antônio Barros com Cecéu em Campina Grande, o amor pela música fez com que eles se apaixonassem e, sete meses depois, já estivessem casados. Em uma conversa que tivemos, Cecéu me confessou emocionada que Antônio teria lhe afirmado quando resolveram seguir na vida juntos: “Cecéu, eu não tenho nada para te dar, possivelmente problemas”. Apesar de todos os percalços de uma carreira artística no Brasil, os dois, unidos pela música e vivendo, exclusivamente da música que produziram, permanecem juntos, há 51 anos, tendo construído uma das obras mais admiráveis na música popular do Brasil.

Existem vários exemplos, no Brasil, de renomados compositores que sem conhecer uma nota de música, sem tocar nenhum instrumento, fizeram suas músicas utilizando simplesmente a voz e deixaram obras imortais. O médico e compositor pernambucano Zé Dantas, grande parceiro de Luiz Gonzaga, era um desses casos. O genial carioca de pseudônimo Luiz Antônio e o cientista paulista Paulo Vanzolini são, também, sempre citados. Lamartine Babo, uma das maiores figuras do nosso cancioneiro popular, além de excepcional compositor, segundo um depoimento do maestro Radamés Gnattali, “descrevia todo o arranjo, cantando a introdução, o meio e o fim, solfejava acordes e sugeria partes instrumentais. A gente só fazia escrever”. São talentos inatos. A paraibana, nascida em Campina Grande, Mary Maciel Ribeiro, Cecéu, faz parte desse seleto grupo de grandes autores intuitivos brasileiros. Já nasceu impregnada de música e foi, assim, que se tornou uma das principais compositoras da nossa música popular.

Após o casamento, em 1972, Antônio Barros e Cecéu foram morar no Rio de Janeiro. Como a música nordestina estava em baixa e por sugestão de uma gravadora passaram a fazer e a cantar músicas românticas e formaram o duo Tony e Mary, fórmula que estava sendo utilizada na época, com a mudança do Antônio para o inglês Tony, o que também estava sendo comum em intérpretes e grupos naqueles anos em que a música internacional, majoritariamente de origem norte-americana, invadiu o mercado brasileiro. A dupla Tony e Mary, inicialmente gravou um disco compacto e, depois, em 1976, gravou outro no formato LP que teve boa repercussão.

A fase da dupla Tony e Mary teve vida breve e logo Antônio Barros e Cecéu voltaram-se para a música de raiz nordestina e a reunião da criatividade dos dois produziu um número enorme de composições que, cantadas por vários intérpretes, se tornaram grandes sucessos e que continuam, até hoje, sendo executadas e regravadas, como se constata por algumas gravações originais:

– Trio Nordestino: “É madrugada”, “Já faz tempo não lhe vejo”, “Forró desarmado”, “O Nénem”.

– Marinês: “Nosso amor foi uma aposta”, “Sou o estopim”, “Bate coração”, “Rompeu aurora”.

– Jorge de Altinho: “Xodó beleza”, “Ninguém desata esse nó”.

– Luiz Gonzaga: “Forró número 1”, “Forró da miadeira”.


– Os 3 do Nordeste: “É proibido cochilar”. “Homem com H”, “Forró em São Miguel”, “Forró do Poeirão”, “Por debaixo dos panos”, “Amor com café”.

Antônio Barros e Cecéu também conseguiram grandes êxitos interpretando as suas próprias músicas, como “Forró do Xenhenhém”, “Casamento de Maria”, “Não lhe solto mais”, “Bulir com tu” e tantas outras.

“Não lhe solto mais”/“Bulir com tu” – Antônio Barros Cecéu e Tom Oliveira

Em 1981, Antônio Barros alcançou outro grande sucesso popular extrapolando, mais uma vez, o segmento restrito do mercado da música regional. Uma regravação de “Homem com H”, que foi feita por Ney Matogrosso, foi uma das músicas mais tocadas no ano e Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, no já citado livro “A canção no tempo”, destacaram-na como uma das mais representativas de 1981. Embora Ney Matogrosso tivesse relutado em gravar “Homem com H”, segundo Zuza Homem de Mello e Jairo Severiano porque o xote de Antônio Barros seria “estranho ao seu estilo”, a música se tornou, nas palavras do próprio Ney Matogrosso, o maior sucesso da sua carreira e o cantor depois regravaria “Por debaixo dos panos”, autoria de Cecéu. A partir daí, a dupla de compositores paraibanos passou a ter músicas gravadas por Fagner, Elba Ramalho, Alcione, Amelinha, MPB4, Zé Ramalho, Dominguinhos e tantos outros intérpretes, além daqueles do segmento da música regional.

Ney Matogrosso: “Homem com H”

MPB4: “Eu não digo pra ninguém”


Zé Ramalho e Flávio José: “Paraí-ba”

O compositor Marcus Vinícius de Andrade foi um dos participantes do Grupo Sanhauá, movimento literário que surgiu na Paraíba em meados da década de 1960. Para o poeta Sérgio de Castro de Pinto, que fazia parte do Sanhauá, Marcus Vinícius era “de longe o mais equipado teoricamente entre nós todos, espécie de Mario de Andrade do Grupo”. Marcus Vinícius, ao analisar a música de Antônio Barros e Cecéu que, para ele, “fala o português gostoso do Brasil – como diria o grande Manuel Bandeira”, acrescenta:

“Autores de mais de setecentas obras, das quais umas duzentas se tornaram sucesso, Antônio Barros e Cecéu conhecem a fundo a linguagem da canção, da boa e simples canção que atinge todos os segmentos do público, sendo assobiada nas ruas e cantada com naturalidade em choupanas e palácios, por gente de todas as idades e condições sociais […] eles são o exemplo mais perfeito de autores que sabem conciliar simplicidade e refinamento, picardia e criatividade, linguagem popular e bom-gosto”.

A parceria de Antônio Barros e Cecéu, na música e na vida em comum, já dura mais de meio século. Antônio Barros, atualmente com 93 anos de idade, é o último remanescente dos grandes nomes da chamada “Época de Ouro” da música nordestina, contemporâneo de Luiz Gonzaga, Zé Dantas, Humberto Teixeira, Jackson do Pandeiro, Marinês, José Marcolino e tantas outras figuras notáveis que tornaram grandiosa a música do Nordeste brasileiro. Como os sabores especiais que surgem da carne assada na brasa e da comida feita em panela de barro, a música de Antônio Barros e Cecéu tem o gosto de “Forró na Brasa”.

Nota: O autor aproveita esse texto para registrar a comemoração dos 60 anos da criação do Curso de Engenharia Elétrica da antiga Escola Politécnica de Campina Grande (hoje vinculado à UFCG). A música de Antônio Barros e Cecéu faz parte da vida de muitos engenheiros e engenheiras que se formaram naquela instituição que, da mesma forma que a notável dupla de compositores, é motivo de orgulho para a Paraíba.

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1 COMENTÁRIO

  1. Flávio Brito na sua excepcional capacidade criativa nos brinda com um presente musical da melhor qualidade chamado Antônio Barros e Cecéu.
    Um banho de história musical que conclui com uma homenagem mais do que merecida à nossa querida Escola Politécnica de Campina Grande a inesquecível Polí.
    Gratidão Flávio Brito.

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