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O som do Brasil

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Por: Flávio Ramalho de Brito;

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No sábado de Carnaval de 1934, há exatos 90 anos, o jornal Correio da Manhã do Rio de Janeiro publicava uma matéria que tinha como título “Evadiu-se de um estabelecimento de cura – Ainda não foi descoberto o paradeiro do enfermo”. A notícia se referia ao desaparecimento de um doente que se encontrava, há cerca de 10 meses, em tratamento na Colônia de Psicopatas (depois denominada Juliano Moreira) localizada no bairro de Jacarepaguá. Durante todo o sábado o enfermo foi procurado nas redondezas da Colônia, mas não foi localizado. No dia seguinte, as buscas foram retomadas e, no final da tarde, o seu corpo foi encontrado boiando nas águas de uma cachoeira na represa que atendia ao estabelecimento de saúde.

Como de praxe, o corpo foi levado para a autópsia no Instituto Médico Legal. Por aquela época, para tentar se livrar das inconstâncias da vida de músico, Pixinguinha havia arranjado um emprego público como Fiscal de Limpeza da Prefeitura. Naquele dia, ao fazer uma inspeção em área próxima ao IML, Pixinguinha foi convidado por um amigo que trabalhava no necrotério a identificar um corpo que seria de um músico e que ele poderia conhecer. Pixinguinha, então, constatou que o corpo que fora autopsiado era do pianista e compositor Ernesto Nazareth, um dos maiores gênios da nossa música e aquele que, na definição do seu amigo e admirador Villa-Lobos, era “a alma da música do Brasil”.

Para a pianista Eudóxia de Barros, “a música brasileira se divide em pré-Nazareth e pós-Nazareth. Somente com ele começou a ser verdadeiramente brasileira, com ritmos sincopados e brejeirice”. A importância de Ernesto Nazareth para a música brasileira é também destacada pelo maestro e compositor Edino Krieger:

“O processo de formação da identidade sonora do Brasil se estendeu ao longo de séculos, em que a miscigenação de sons e ritmos de várias procedências, fecundados aqui pela prática multiforme e diversificada, foram fermentando e criando um inconsciente musical coletivo do qual alguns talentos maiores se tornariam expoentes, efeitos e causas a um só tempo.
Ernesto Nazareth foi um desses momentos privilegiados: do toque sensível de suas mãos, ritmos, harmonias e inflexões melódicas de procedência europeia foram adquirindo um novo sotaque, um novo tempero, um novo balanço com a inserção de condimentos de origem africana […] Ele participou de um momento decisivo para definição da identidade musical brasileira, ajudando a formatar uma expressão que abriria caminho para a criação musical popular e clássica do seu tempo e se projetaria no tempo futuro pela influência que exerceu e ainda exerce sobre outros talentos maiores como Pixinguinha, Zequinha de Abreu, Villa-Lobos, Mignone, Radamés e tantos outros. Ele é, sem dúvida, uma das figuras emblemáticas da identidade sonora do Brasil”.

Ernesto Júlio Nazareth nasceu, em 1863, no Rio de Janeiro, filho de um modesto despachante aduaneiro. Começou a estudar piano com a sua mãe, que, ao que se conta, era excelente pianista. Nas primeiras lições ficou claro que o menino era um predestinado para o instrumento. Para o professor e musicólogo paraibano Baptista Siqueira (irmão do maestro José Siqueira), autor de uma das mais importantes obras sobre o compositor (Ernesto Nazareth na Música Brasileira, Editora Aurora, 1967), Nazareth era um daqueles talentos natos, “sem que se saiba como aprenderam a compor, e tocar piano tão bem, sem terem feito um curso normal”.

Com o falecimento de sua mãe, quando ele tinha 10 anos de idade, Ernesto Nazareth ficou sem a sua professora de piano. Um novo professor foi arranjado, mas, em pouco tempo, o aluno superava o mestre. A vocação de Nazareth era a música clássica, mas no Brasil daquela época, o aperfeiçoamento musical teria que ser feito na Europa, para onde foram Francisco Braga, Leopoldo Miguez, Henrique Oswald, Araújo Porto-Alegre e outros. Mas, as parcas condições financeiras do seu pai não permitiam a Nazareth sonhar tão alto.

Ernesto Nazareth tinha 14 anos, em 1887, quando fez a sua primeira composição, a polca “Você bem sabe”, um gênero que então estava em grande evidência no país. A partitura da música foi editada pela conceituada Casa Arthur Napoleão e, a partir daí, Nazareth passou a viver exclusivamente da música, como compositor e pianista, tocando profissionalmente em casamentos, batizados, salões e saraus em casas de famílias. Em um desses saraus em que ele animou o jovem músico teve um ouvinte atento, um senhor retraído que se aproximou do piano e pediu para que ele tocasse alguma obra de Schumann. Era o escritor Machado de Assis. Teria Machado se inspirado em Ernesto Nazareth para escrever Um Homem Célebre? Pestana, o personagem do conto, era um pianista que tocava em saraus e compunha polcas, mas almejava se apresentar em salas de concerto, tocando Moszkowski, Liszt, Beethoven e, principalmente, Chopin cuja influência sobre as valsas que Nazareth compôs é perceptível.


Em 1893, uma composição de Ernesto Nazareth teve uma grande repercussão, o tango Brejeiro. É importante aqui destacar a explicação do escritor Mário de Andrade de que “o que o brasileiro chamou um tempo de tango, não tem propriamente relação nenhuma com o tango argentino. É antes a habanera e a primitiva adaptação brasileira dessa dança cubana”. Sobre essa diferenciação entre o nosso tango (que, para alguns, na verdade, seriam choros pianísticos), do qual Nazareth foi o maior expoente, e o tango portenho, o Maestro Baptista Siqueira se manifestou, em extensa análise técnica, na sua obra sobre Ernesto Nazareth: “O tango “genuinamente brasileiro” (como escreveu Nazareth), é música pura, enquanto o tango argentino é música dramática”.

Ainda com relação ao Brejeiro, Jacob do Bandolim, magistral instrumentista e pesquisador rigoroso, conta um pitoresco episódio relacionado com a música e que dá uma ideia do que se ganhava com a música na época. Nazareth vendeu os direitos do Brejeiro por cinquenta mil réis, mas o sucesso da composição foi tão grande que o editor se viu obrigado a presenteá-lo com um “valioso” mimo: um guarda-chuva. Brejeiro é uma das músicas de Nazareth que foram mais gravadas e um dos melhores registros da composição é de 1968, feito por Jacob do Bandolim e seu Conjunto Época de Ouro. Segundo Jacob, “imprimimos-lhe modulações capazes de despertar curiosidade e atenção […] para aproximar Nazareth dos jovens de hoje”. .


No início do século 20, Ernesto Nazareth já era um compositor renomado. Como só a venda de partituras não permitia o seu sustento, Nazareth dava aulas particulares de piano e trabalhava como demonstrador de músicas em estabelecimentos que vendiam instrumentos e partituras. Vivia-se, ainda no tempo do “cinema mudo”, quando as películas ainda não tinham som, e Nazareth passou a ser a atração principal da sala de espera do Cine Odeon, o principal do Rio de Janeiro. Alguns frequentadores do Odeon iam para o cinema, não para assistir aos filmes, mas para ouvir Nazareth ao piano na hora que antecedia as exibições cinematográficas. Era o caso do assíduo senador Ruy Barbosa. Foi no Odeon que o célebre pianista polonês Arthur Rubinstein ouviu Nazareth e mostrou interesse em conhecê-lo e ouvir suas composições e foi inspirado no cinema carioca que Ernesto Nazareth fez Odeon, um dos seus tangos mais famosos.


Nazareth continuou produzindo músicas magistrais como Bambino, Dengoso, Eponina, Fon-Fon, Apanhei-te Cavaquino, Ameno Resedá e tantas outras que compõem uma extensa obra de cerca de 220 composições. Mas, os tempos haviam mudado, o cinema falado chegara e a música das salas de espera dos cinemas não mais existia. Um novo gênero musical, o samba, aquele nascido no bairro do Estácio, tomava conta da cidade e a música de Nazareth ia sendo pouco a pouco desprezada. As dificuldades para sobrevivência do compositor começaram e podem ser avaliadas em uma entrevista que ele deu a um jornal de São Paulo: “Passei oito anos sem ter piano. O senhor talvez não calcule o que representa isso para um homem fascinado pelo piano. Parece castigo, não é?”.



Em 1926, Ernesto Nazareth se apresentou com grande êxito em São Paulo e uma conferência que foi proferida por Mário de Andrade no Teatro Municipal da cidade dá um testemunho da reverência que os paulistas demonstravam para o grande pianista e compositor carioca. Por essa época, alguns fatos começaram a afetar a vida de Nazareth, O falecimento da sua esposa, uma crescente perda de audição (decorrente de um acidente na infância) e sequelas da sífilis que ele contraíra (sem tratamento adequado naquele tempo) levaram-no à doença que resultou no seu fim trágico.

A obra de Ernesto Nazareth é eminentemente instrumental e para o maestro Julio Medaglia “toda a variada base rítmica da música brasileira foi praticamente ‘instrumentalizada’ ao piano por sua boa técnica pianística”. Apesar disso, surgiram alguns “parceiros” que acrescentaram letras a algumas músicas de Nazareth, tais como Vinícius de Moraes, Hermínio Bello de Carvalho e José Miguel Wisnik. Mas, o “parceiro” de Nazareth que talvez tenha mais se adequado ao ambiente cultural da época em que as composições foram feitas tenha sido mesmo o poeta Catulo da Paixão Cearense, o que se pode comprovar pela belíssima interpretação de Bambino (batizada por Catulo como Você me dá) na voz de Zé Luiz Mazziotti acompanhado pelo piano de Antonio Adolfo.


Ernesto Nazareth não conseguiu, por falta de condições financeiras, se dedicar à música clássica, como era a sua vocação e o seu desejo. Apesar da sua técnica pianística refinada e da admirável elaboração das suas composições, a música de Nazareth, no seu tempo, não era bem aceita por setores conservadores da chamada música erudita brasileira, como enfatizou o maestro Baptista Siqueira: “Basta relembrar aquele triste episódio do concerto no Instituto Nacional de Música em 1922, promovido por Luciano Gallet, que precisou de garantia policial, somente porque seu nome constava do programa”. Hoje, ironicamente, a música de Ernesto Nazareth está presente nas principais salas de concerto em todo o mundo.

Ernesto Nazareth conseguiu um feito extraordinário, a sua música além de ser tocada em salas de concerto por pianistas de formação erudita, também faz parte do repertório popular do país nas rodas de choro por todo o Brasil. Quantos compositores conseguiram tal êxito? Para o musicólogo Mozart de Araújo, “as características da música nacional foram de tal forma fixadas por ele e de tal modo ele se identificou com o jeito brasileiro de sentir a música que a sua obra […] se revalorizou, transformando-se hoje no mais rico repositório de fórmulas e constâncias rítmico-melódicas, jamais devidas, em qualquer tempo, a qualquer compositor de sua categoria”.

 

Fonte imagens:ernestonazareh150anos.com.br

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