Por: Antônio Henrique Couras;
As vezes me pego lembrando de como, na infância, me sentia deslocado do mundo. Muitas vezes sonhava com histórias inventadas de antepassados importantes e ricos, como em um conto de fadas, na tentativa de me situar num mundo que me parecia tão estranho. O tempo passou e qual não foi a minha surpresa de descobrir que minha família, de fato tinha singular importância histórica.
Além das mais de dez gerações de criadores de gado do sertão da Paraíba, tradição só subvertida pelo meu avô que tinha alma de nômade, descobri que descendo, dentre tantas outras pessoas, de revoltosos da revolução de 1817, que queriam a independência de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte (também almejavam sequestrar Napoleão da ilha de Santa Helena e fazer dele presidente da nova república, fato que os pernambucanos escolhem não mencionar ao contar a história de sua bandeira).
Mas nem tudo são flores, sou branco e minha família também sempre o foi, logo não é muito difícil imaginar que temos uma gigantesca dívida histórica ante os indígenas que foram massacrados para que suas terras nos fossem cedidas pelo rei de Portugal, além dos tradicionais africanos trazidos de além-mar para o trabalho forçado nas terras da caatinga.
Apesar de não haver registros históricos quanto ao fato, também não é difícil imaginar que meus antepassados escravizaram algumas pessoas que sobreviveram dos massacres promovidos pelos enviados da Coroa.
Contudo, a minha cosmogonia familiar começa em 1650 quando um militar do exército de Sua Majestade el Rey chega em terras brasileiras e, acredito, não muito tempo depois, é ferido em combate, mas acolhido por uma família do povo Kariri (o que o povo Kariri, que é uma etnia típica do interior do continente, fazia em Baía da Traição em meados do século 17 ninguém sabe. Talvez fugindo da seca ou em uma peregrinação anual em busca do caju como era costume de vários povos locais). Ali, ferido, foi acolhido e teve suas chagas curadas e ainda ganhou a mão da filha do homem que o acolheu.
O acolhimento de estrangeiros por indígenas não era algo incomum. Tradicionalmente, os mais diversos povos que habitavam o que hoje chamamos de Brasil, tinham por costume acolher genros provenientes de outros grupos. Ainda que em outros grupos, que habitavam mais para o centro do continente, o costume fosse diferente, no litoral, desde o atual Maranhão ao que hoje seria o litoral paulista, habitavam os povos da etnia Tupi, e esses, apesar de viverem em uma sociedade patriarcal, a riqueza era matrilinear, o que significa que quem mandavam eram os homens, mas a riqueza, as terras, pertenciam às mulheres. Então, no que Jorge Caldeira intitula “política dos genros”, era comum que ao chegarem em idade de casar, os rapazes fossem buscar noivas em outras tribos. Assim, não era incomum ter forasteiros casando com suas filhas.
Ainda no costume Tupi, residia um hábito impossível de ser contornado: o canibalismo. E a história não é muito diferente do que aprendemos na escola. Se o homem fraquejasse durante o ritual em que seria sacrificado, esse era considerado inservível para os rituais e era incorporado ao grupo. Dependendo de grupo a grupo, poderia ser tomado ora como escravo, ora como membro de uma espécie de “plebe”.
Ao ser capturado, era cuidado, engordado, ganhava rede e muitas vezes uma mulher (a possível prole resultante da união era igualmente devorada). No que nos conta Reinaldo José Lopes, em seu livro “1499, o Brasil antes de Cabral”:
É difícil evitar a conclusão de que a antropofagia era um dos elementos centrais da sociedade dos Tupi da costa (e também de grupos como os Guarani e os Juruna). Capturar e devorar os membros de tribos rivais eram atividades que marcavam os homens corajosos e altivos. A justificativa para a prática não era a necessidade de exterminar os adversários ou de conquistar seus territórios, mas a obrigação de manter vivo um ciclo aparentemente interminável de vingança que enobrecia os que participavam dele “não sabes que tu e os teus mataram muitos parentes nossos e muitos amigos? Vamos tirar a nossa desforra e vingar essas mortes. Nós te mataremos, assaremos e comeremos”, diz os Tupinambá a uma vítima prestes a ser devorada no relato de frei Claude D’Aberville, franciscano que participou da tentativa de colonização francesa no Maranhão no começo do século XVII. A resposta do futuro assado? “Pouco me importa. Tu me matarás, porém eu já matei muitos companheiros teus. Se me comerdes, fareis apenas o que já fiz eu mesmo. Quantas vezes me enchi com a carne de tua nação! Ademais, tenho irmão e primos que me vingarão”.
Sentimentalismos familiares à parte, devo ser grato pelo meu ancestral que deu sua filha em casamento a um português todo lascado (chamava-se Pedro “o velho”, então podemos imaginar o que a pobre moça, minha ancestral, teve de enfrentar), e ao português lascado que deve ter esperneado feito criança ao saber que viraria churrasco. Se tivesse sido corajoso eu não estaria aqui hoje escrevendo essas linhas, então, viva os covardes!
Covardes ou não, os que escapavam de serem assados eram amplamente usados pelos sogros. Não foi incomum, no início da colonização, grupos indígenas se aliarem aos invasores portugueses numa clássica estratégia de “se não pode vencê-los, junte-se a eles”. Aí que entravam os genros. Conhecedores dos costumes e muitas vezes da língua (vamos lembrar que franceses, holandeses, ingleses e afins adoravam invadir a colônia alheia), o comércio de pau-brasil e de variadas “drogas do sertão” eram feitas com os cabeludos europeus que fincavam suas âncoras por essas bandas. E assim surgiu não só minha família, mas boa parte do povo brasileiro.
Não é uma história completa com nomes e datas, e muitas vezes precisamos fazer “deduções educadas” para entendermos um pouco de nossa história. Mas eu gosto de pensar que não sou simplesmente um descendente de europeus, mas também de um povo que habita essas terras há 10 mil anos, sucessores das preguiças gigantes. É verdade que me beneficio enormemente de ser branco, descendente de quem sou. Mas isso não é tudo. Por um lado, até o final do século 19 meus tataravós possuíam outros seres humanos como se fossem propriedades, por outro, até o final do século 17 meus antepassados comiam seus inimigos no churrasco de domingo. Gosto de pensar que no transcorrer dos séculos nosso senso moral vem melhorando.
Assim, ao estudar a história do meu país vejo que a minha própria história, e da minha família, está intimamente ligada a essa terra e a esse povo. Não sei se posso dizer que tenho orgulho de ser descente de canibais e colonizadores, mas é fato que saber disso tudo me torna incontornavelmente filho desse solo e, para o bem e para o mal, corresponsável pelo presente e pelo futuro. Acredito que também não seria devorado. Estou apavorado.