País Corrompido

Outro dia me deparei enquanto passeava pelas avenidas das redes sociais com uma discussão que, para mim, era inédita. Falava-se de forma contrária ao senso comum, que trata tanto o povo quanto o Estado brasileiro como corruptos, e propunha uma inversão na ótica com a qual observamos a questão, não mais apontando dedos ao discutir a corrupção, mas sugerindo que observássemos quem são as pessoas que se beneficiam com essa corrupção.

É parte do senso comum assumirmos que os políticos são os corruptos que destroem toda a capacidade do país “ir para frente”, contudo, será que são apenas os membros do executivo e legislativo os responsáveis pelo desrespeito à coisa pública? Se assim o fosse, qual seria o interesse de grandes conglomerados empresariais e até mesmo indivíduos abastados em financiar campanhas e participarem das tomadas de decisões país afora?

O sociólogo Florestan Fernandes, em sua obra “A Revolução Burguesa no Brasil”, trata amplamente sobre um tema intimamente relacionado a essa temática. O autor trata a respeito da situação histórica peculiar do Brasil, em que nunca, desde a chegada dos portugueses em nossa costa, houve, como em países da Europa e das Américas, revoluções que depusessem o poder posto e o substituíssem por um novo grupo, classe ou povo.

Se observarmos, não tivemos, como em outras ex-colônias, uma guerra de independência que depusesse o antigo poder colonial e estabelecesse uma administração e uma elite governante autóctone. No nosso caso houve apenas a separação do Reino do Brasil do Império Português. Assumindo a chefia do novo Estado o “Príncipe do Brasil”, filho do Imperador do Brasil (Título que Dom João VI usou até sua morte). A nossa independência foi quase uma passagem dinástica.

Alguns anos mais a frente não passamos, em qualquer momento, por uma revolução burguesa, nem mesmo durante a passagem do Império à República.

As elites coloniais se tornaram as elites no Império, que se mantiveram no topo da cadeia política apesar de mudanças estruturais importantes, desde a abolição da escravidão, passando pela industrialização do país, e, até hoje, quando mal vemos elites industriais ainda vemos os reis do agro flanando lado a lado com os donos do capital financeiro, e estes ainda ostentam os mesmos nomes e, não incomum, as mesmas terras que seus antepassados possuíam em tempos imemoriais.

Ainda em se falando em terras e produção agrícola, nosso eterno carro chefe na balança comercial, este é um negócio amplamente e intrinsecamente conectado ao roubo de terras. Roubo, sim, e não me refiro à invasão das potências coloniais no Novo Mundo, ainda hoje, e principalmente desde a expansão da fronteira agrícola incentivada pelos militares na década de 1970, o crescimento, expansão geográfica e aumento produtivo do agronegócio brasileiro é fundamentalmente baseado no roubo de terras. Sejam da União, sejam de particulares.

Um aspecto que se faz fundamental entender é que além do roubo e abuso da coisa pública, incontáveis são as vezes e as formas que esse grupo dominante se utiliza da sonegação fiscal. Não bastando o roubo e a destruição do nosso país, na sua forma mais tangível que são suas terras, cursos d´água e recursos minerais e agrícolas, a propriedade pública, roubada e transformada em privada, não cumpre com a sua função de propriedade social. E em se falando de propriedade social não me refiro sequer à reforma agrária ou outras formas de acesso da população aos bens nacionais, mas sim à pilhagem dos recursos produzidos nessas circunstâncias. Não produzem bens que ficam em nosso país, e sequer pagam as contribuições devidas sobre as riquezas geradas com esses recursos.

E é a partir desse “conforto histórico” que nossa classe dominante (me recuso a chamá-los de elite), vem gerindo o Estado, elegendo seus representantes, advogando em favor de seus interesses, e se valendo da realidade de que nós nunca disfrutamos de uma verdadeira revolução popular nesse país. Há 500 anos que esse grupo cria formas de legitimar a sua forma de dominação sobre o país. Assim, explica Florestan Fernandes, trata-se a coisa publica como se privada fosse, e os interesses individuais passam a serem tratados como públicos.

Invertendo completamente a lógica popular e democrática.

Quando o Estado Democrático é, finalmente, criado, através de ações e participação popular, ele se torna o bode expiatório perfeito da corrupção. Não vivemos mais em um império ou ditadura, logo, tudo que acontece no país é responsabilidade do povo. Desta forma, o entendimento “lógico” seria que a maior construção popular na história do nosso país é também a mais corrupta, e a responsabilidade disso é todo o povo brasileiro, também corrupto.

Assim sendo, a corrupção no Brasil seria culpa minha e sua, que não soubemos escolher. E isso se torna a distração perfeita para que não consigamos olhar para além dos salões do planalto central e que passemos a ver quem são aqueles que manipulam e corrompem o Estado brasileiro.

Não quero dizer com isso que há fraude eleitoral nem nada do gênero, o sistema eleitoral democrático funciona perfeitamente. Funciona perfeitamente também o que acontece antes e depois das eleições. Quem são, e por que tais ou quais candidatos são escolhidos? Por que essa ou aquela discussão é pautada no congresso nacional? Fato é que apesar da inconteste participação popular e lisura dos processos eleitorais, o poder do povo é limitado à sua condição de massa despossuída.

Não somos nós os sujeitos de interesse do capital nacional, não é para nós que as leis fiscais e trabalhistas são feitas, não é para nós, muito menos, que a situação fundiária é posta. Não somos nós que geramos riquezas, muito menos fomos nós, enquanto povo, que estávamos, lá atrás, na criação do Estado e de seus métodos e interesses,

E são esses métodos e interesses que nos fazem acreditar que somos nós, enquanto povo, eleitor e senhor do destino do país que criamos e elegemos nossos representantes que gerem uma máquina pública corrupta e ineficiente, e que essa é a razão da pobreza endêmica de nosso país. Como podemos explicar, senão pela corrupção generalizada do povo brasileiro sermos uma das maiores economias do mundo e, ainda assim, temos pessoas passando fome? Certamente a culpa é da grande massa popular que não sabe escolher seus representantes.

Através dessa narrativa podemos observar como essa classe dominante, possuidora das terras e do capital nacional, nos manipula para que os pilares da democracia e do Estado democrático ruam.

A política, a participação popular e o voto passam a ser abjetos, repulsivos, e tidos como infrutíferos a partir de uma ótica em que a corrupção, inerentemente, habita o Estado. Qual seria o sentido, nesse caso, de insistirmos em uma luta política se a própria política e participação popular são algo menor e sem jeito?

Se observarmos bem, contudo, podemos ver que atrás das constantes cortinas de fumaça de escândalos de corrupção, está uma vontade política de afastar o povo do Estado. E aqui sugiro uma observação: quantas vezes já não ouvimos de algum tio, com a memória um pouco fraca, dizer que não havia corrupção na época do regime ditatorial no nosso país? De fato, os escândalos de corrupção são diretamente proporcionais à participação popular na política e no governo.

Poderia entrar aqui no debate filosófico de que “se uma árvore cair na floresta e ninguém ouvir, ela realmente caiu?”, se alguém roubou, mas ninguém viu, houve roubo? Assim, quanto mais olhos, quanto mais gente, quanto mais participação há no Estado, mais são as chances que os esqueletos institucionais do nosso país passem a aparecer.

O fato é que, a corrupção existe, mas não da forma como acreditamos. O que vemos e sabemos é apenas um efeito de um sistema que não foi feito para nos beneficiar e muito menos para que façamos parte dele. O Estado nunca foi um instrumento do povo, seus interesses nunca foram os do povo. A corrupção dentro do Estado Brasileiro existe e é um problema, mas não é ela que é a nossa inimiga, ela é apenas uma sombra, um eco, do que realmente acontece nesse país.

Propinas, rachadinhas e tantos outros termos e práticas tão conhecidos são apenas o que cabe a nós, povo, participar e saber. O verdadeiro jogo de compra e venda do nosso país acontece longe nos nossos olhos e ouvidos enquanto nos distraímos com a politicagem miúda que vemos no dia a dia.

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