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Os monstros

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Eu tenho por teoria que não existe ninguém mais desagradável do que aquela pessoa a quem você, cordialmente, indaga “como vai?”, e ela conta tudo sobre a própria vida. Acredito que na nossa vida não tenhamos que usar “máscaras” ou “personagens” como atores interpretando um papel. Particularmente, faço terapia há anos para que todos possam ver, se não o verdadeiro eu, mas ao menos algo que me permita me sentir confortável em qualquer lugar ou companhia. Sou péssimo em guardar segredos ou contar mentiras. Contudo, a vida nem sempre nos permite sermos “nós mesmos” o tempo todo.

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Numa antiga canção de Ivon Cury, ele lista um rol de pequenos desprazeres que temos que enfrentar por pura “Delicadeza” (palavra que intitula a música); ficar de pé quando queremos sentar, “e numa casa ter de jejuar, se nos convidam para jantar”. E a lista da divertida canção segue seu rumo. Mas o que nos impele a sorrir quando a vontade era dizer “não me aborreça, tu me dás azia!”? Acredito que não seja o caso de dizermos que sofremos de distúrbios de personalidade, mas mais uma adequação social que exige de nós, para cada situação, uma “ferramenta”. Mas onde traçar a linha?

Não pretendo, aqui, espichar minhas pernas para além do meu parco conhecimento e não entrarei nos caminhos desconhecidos da psicologia ou antropologia, mas gostaria de me utilizar da literatura para tanto. Outro dia li o clássico “O médico e o monstro”, de autoria de escocês Robert Louis Stevenson publicado pela primeira vez em 1886, e na obra somos apresentados a um médico que, através de compostos químicos, cria uma fórmula que é capaz de lhe trazer a juventude e lhe dá um disfarce para cometer os atos que a sua figura pública de médico respeitado e rico não lhe permite.

Não sei se algum outro leitor da obra pôde aferir, como eu, uma grande metáfora às drogas que usamos para fugir, muitas vezes, de nós mesmos. No caso da trama (me perdoem os que ainda não leram, mas acredito que depois de mais de 130 anos eu já posso dar spoilers), A pessoa do Dr. Henry Jekyll divide sua personalidade em duas, contudo, cada personalidade, apesar de habitar o mesmo corpo, ao transformar-se, adquire distintos aspectos físicos. Dr. Jekyll permanece com sua carinha de distinto senhor enquanto a sua parte mais “primeva” adquire a personalidade e as formas de Edward Hyde. Contudo, o mais curioso é que com o passar do tempo, as transformações passam a se darem sem a necessidade das drogas, e, pouco a pouco, a personalidade dominante não é mais a do respeitável médico, mas do vilanesco Hyde. Me pareceu inevitável a associação a tantas pessoas que ao fazerem usos de tais ou quais substâncias transformam-se de médicos a monstros.

Ao me aproximar do final do livro o que me chamou a atenção foi que talvez a poção criada pelo médico não separasse seu lado “bom” de seu lado “mau”, mas apenas o possibilitou dar liberdade ao monstro que era e sempre viveu dentro de si. E isso ressoou enormemente em minha cabeça.

Outro dia refletia como muitos de nós, se não todos, temos um pouco de médico e monstro dentro de nós. Analisava várias pessoas, inclusive a mim mesmo, e quais são os nossos monstros. A uns chamei seus monstros de avareza, outros de ressentimento, outros de desrespeito ou insegurança. E me perguntava por que não conseguimos nos livrar desses monstros. Tantas pessoas que conheço machucam aqueles que os mais amam com esses monstros. Tornam, muitas vezes, as próprias vidas em martírios por culpa desses seres sombrios que vivem dentro de nós.

A questão seguinte que me fiz foi: será que sobreviveríamos caso esses monstros sumissem? Ou nos tornaríamos, permanentemente, o monstruoso Sr. Hyde? Difícil saber. Acredito que sem nossos monstros dentro de nós mão seríamos nós mesmos, ou ainda que, talvez, nossos monstros não sejam tão monstruosos assim, sejam apenas reflexos ou partículas mais densas do nosso “eu bom”. Fato é que, eu, prefiro manter meu monstrinho bem aninhado dentro de mim.

Com o tempo de convivência, aprendi que os diversos monstrinhos que vivem dentro de mim não precisam ser exorcizados, precisam ser alimentados, mantidos calmos e satisfeitos. Quase como predadores em um habitat saldável. Sem cobras há a infestação de ratos. Meus monstrinhos, apesar de não serem a minha versão mais aprazível, já se mostraram valorosos guerreiros em minha vida.

Não me orgulho de ser um pouco “pedante”, como diz minha mãe, mas esse sentimento de superioridade me ajudou a enfrentar momentos em que tive que manter o nariz de pé. Minha ansiedade foi a culpada de ter procurado ajuda e descoberto, e aprendido a cuidar, de tantos outros monstrinhos. As humilhações que sofri (e ainda sofro) por causa do meu corpo gordo me permitiram ter uma vivência que me cobra empatia de outros invariavelmente.

Venho percebendo que o problema não são os monstros que habitam em nós, mas como nós os tratamos. Chuva só é ruim na inundação, já a sua falta causa mortíferas secas. O que somos é o que é. Nosso lado bom e mal compõe-se em nossa formação. Por mais incômodos e barulhentos que sejam meus monstrinhos, não consigo me imaginar sem ter vivido desde sempre com a sua companha, afinal, foram as lições que eu aprendi com eles que me fizeram ter um lado “bom” capaz de saber (mais ou menos) quando ou não devo ouvi-los, alimentá-los ou pô-los em uma rígida dieta ou adestramento.

Talvez a nossa existência vá para além de nos obrigar a ir separar o médico do monstro, mas aprendermos a lidar com a mais humana das situações: sermos médicos monstruosos. O bem e o mal habitam em nós, são partes essenciais do nosso ser. E, no final das contas, pode ser que a vida seja como andar de bicicleta, uma hora estamos com os pedais em cima, outra embaixo, mas é o movimento de subida e descida que nos dá mobilidade que precisamos. E se nos focarmos demais no sobe-e-desce dos pés e esquecermos de olhar pra frente, não há outro fim que não seja a cara no chão.

 

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