
Por: João Vicente Machado Sobrinho;
A mercantilização dos afetos, longe de ser um desvio cultural espontâneo, é expressão direta das escolhas políticas. Não se trata apenas de hábitos culturais ou de excessos individuais, trata-se isso sim, de um modelo econômico legitimado pelo Estado, que opera pela lógica do mercado na mediação das relações humanas.
Datas como o Dia das Mães e o Natal, outrora celebradas em respeito à convivência, à gratidão, à solidariedade e ao reconhecimento simbólico. Foram transformadas em eventos nitidamente comerciais e, de alta rentabilidade financeira. São hoje sustentadas por intensas campanhas publicitárias, que induzem ao consumo pela via do crédito.
Essa cobiça desenfreada do mercado reduz sentimentos e maximiza a avidez por lucro, fragilizando a capacidade financeira dos consumidores e banalizando o endividamento das famílias. O afeto, nesse arranjo, deixa de ser valor social para se tornar ativo econômico. Na galeria de afetos mercantilizados estão sentimentos, vínculos familiares, e tradições simbólicas. É fácil perceber que o mercado conseguiu transformar o calendário em trezentos e sessenta e cinco dias de celebrações, regadas a emoção e consumo.

A exacerbação do consumo
No caso brasileiro, a escolha do modelo de desenvolvimento foi feita ainda no século XVIII, com a opção pelo liberalismo capitalista, no qual o mercado dita as regras e é apresentado como regulador absoluto, por meio da famigerada “mão invisível”. O consumo que seduz o indivíduo é o mesmo que funciona como engrenagem do crescimento econômico do Estado.
Nesse contexto, os incentivos estatais ao crédito operam como um engodo: o indivíduo torna-se mero corredor de passagem para que, nas mãos do mercado, seus gastos sejam exibidos como indicadores do capital e do próprio Estado. Politica de distribuição de renda? essa sequer entra em pauta.
O canto da Sereia publicitária hipnotiza e sequestra os valores culturais e afetivos, inclusive assumindo a prerrogativa de redefinir ritos sociais. Esse é o papel exercido pelas grandes corporações diante de um estado silente e omisso.
A publicidade sem freios, ao se apropriar de ícones culturais simbólicos como o Papai Noel, manipula emocionalmente a sociedade no vácuo da ausência de regulação, produzindo um desequilíbrio entre a liberdade econômica e a proteção social.

O crédito fácil, entronizado como uma política compensatória da desigualdade, tem conduzido as famílias a um nível de endividamento endêmico, transformado a dívida em condição permanente de vida. O discurso meritocrático aplicado ao consumo transfere ao consumidor toda culpa, ao mesmo tempo em que oculta as escolhas politicas que sustentam o modelo.
É nesse ponto que recorremos a Frei Beto, cuja reflexão ilumina o contraste entre o Natal do mercado e o Natal do Evangelho. Em artigo publicado em 16 de dezembro de 2024 o autor escreve::
“Neste Natal, não quero o Papai Noel das promoções comerciais, das ceias pantagruélicas, dos presentes caros embrulhados em afetos raros. Quero o Menino Jesus nascido no coração manjedoura, esperança acesa num pasto de Belém, Maria a cantar que os abastados serão despedidos de mãos vazias e os pobres saciados de bens.
Não quero o Papai Noel das lojas enfeitadas, do celofane brilhante das cestas de produtos importados, das garrafas em que os néscios afogam tristezas rotuladas de alegrias. Quero o Menino palestino em busca de uma terra onde nascer e viver, o Menino judeu arauto da paz na Terra aos homens e mulheres de boa vontade, o Menino poupado da estupidez das guerras.
Neste Natal dispenso abraços protocolares e sorrisos sob medida, sentimentos retóricos e emoções que encobrem a aridez do coração. Quero o amor sem dor, a oração só louvor, a fé comungada no sabor de justiça. Não quero presentes dos ausentes, a litúrgica reverência às mercadorias, a romaria pagã aos templos consumistas dos shopping centers. Quero o pão na boca da criança faminta, a paz que se alarga dos espíritos atribulados aos campos de batalha, o gozo de contemplar o Invisível.
Neste Natal, não quero essa pavorosa troca de produtos entre mãos que não se abrem em solidariedade, compaixão e carinho despudorado. Quero o Menino solto no mais íntimo de mim mesmo, semeando ternura em todos os canteiros em que as pedras sufocam as flores.”
Ao denunciar o esvaziamento simbólico do Natal, Frei Beto nos recorda que, no nascimento do Cristo, as poucas pessoas presentes eram todas humildes: José e Maria, os pais terrenos, e alguns pastores trabalhadores anônimos das regiões áridas da Palestina. Sem abrigo nas estalagens de Belém, refugiaram-se num estábulo e fizeram da manjedoura – um simples cochos de alimentar animais – o berço do recém-nascido.
A luz que iluminava a cena era de vela, mas o brilho da Estrela Dalva resplandecia sobre o estábulo e os campos por onde seguiram os magos, vindos de terras distantes, tocados pelo anuncio do renascimento daquele que, feito homem , viria resgatar a humanidade.

Noite de contrastes
Prossegue Frei Beto na sua carta de Natal:
“Não viajarei para longe de mim mesmo, à procura de uma terra na qual eu próprio me sinta estrangeiro, falando um idioma cujo significado me escapa. Mergulharei no mais profundo de minha subjetividade, lá onde as palavras se calam e a voz de Deus se faz ouvir como apelo e desafio.
Neste Natal, farei de minhas gravatas uma imensa corda para enforcar o cinismo das convenções sociais e descerei um por um os degraus dos podres poderes, até ingressar nos subterrâneos repletos de luz dos servos da esperança. Não sonegarei sentimentos e encantos.
Neste Natal, não direi adeus ao ano que finda, no qual recebi vida, fé e mais perguntas que respostas. Pisarei cuidadoso entre mortos inocentes e alentos frustrados, e haverei de conferir no monitor eletrônico quantos foram os dissabores disseminados pela fera disfarçada de humano.
De mãos dadas com o Menino, deixarei que as águas lavem o avesso de minha pele e, em seguida, caminharemos silentes rumo ao novo ano. E eu estarei com os olhos fixos no Menino para que seu verbo se faça carne em meu coração de pedra, cuidando para que ele cresça despregado da cruz, exaltado pela vitória inelutável da Ressurreição.”
Concluímos portanto, que a mercantilização dos afetos não é consequência inevitável da modernidade, mas reflexo de um projeto político que subordina a vida social aos interesses do mercado.

Ao permitir que as datas sagradas oportunizem um alto faturamento, o Estado silente e omisso, abdica de seu papel regulador e legitima um sistema que explora emoções, endivida famílias e aprofunda desigualdades. Esse fenômeno nada mais é do que uma questão pontual de “consumo consciente”, com a conivência de alguns é muito prejudicial à grande maioria. Enquanto o afeto for tratado como mercadoria e o cidadão como consumidor endividado, a sociedade seguirá refém de um modelo que lucra com a fragilização dos vínculos humanos, em detrimento do interesse coletivo.
Que a passagem de ano seja consciente. Que o Natal de Jesus Cristo permaneça como oportunidade anual da solidariedade. Que o Seu exemplo de ultrapassar e vencer reações nos acompanhe ao longo de todo ano, inspirando-nos a construir por nós mesmos esteja conosco no decorrer de todo ano, a nossa independência de modelos políticos opressores!
Referências:
Bíblia Sagrada – Edição Pastoral: Paulus Editora: Amazon.com.br: Loja Kindle
Lista de Natal – Frei Betto;
Fotografias:
O regador luminoso de papai Noel – Pesquisa Google;
O que o Natal nos ensina sobre a pobreza: a desigualdade social e o Reino de Deus – Arquidiocese de Pouso Alegre;
Natal: por que as pessoas trocam presentes? A fascinante explicação antropológica – BBC News Brasil;
Ceia de Natal de rico: receitas e dicas para você ostentar na festa e deixar toda a sua família de queixo caído – Tudo Gostoso;




