Nossa herança feminina

Por: Neves Couras;

Março é mês dedicado a mulher. Mas por que não todos os dias? Olho para mim, que vejo? Todas as mulheres que me geraram e as que eu gerei. Ainda virão, das que gerei as que elas gerarão. Não é tão fácil nem tão pouco insignificante a mulher.

Preciso falar como cheguei aqui. Não irei falar de todas as gerações, mas não existe árvore sem raízes. Foi assim, que tudo começou:

Estudando a nossa ancestralidade, sabemos que a nossa descendência vem da primeira mulher que deu origem a nossa família. Assim, a nossa história começa quando chega ao Brasil Pedro Ferreira das Neves (Pedro Velho), vindo de Portugal e aporta em Mamanguape por volta do ano de 1650. Acredita-se que Pedro tenha contraído alguma enfermidade, e por isso foi acolhido por uma família indígena. Era tradição dos povos originários casarem suas filhas com homens de outros grupos, assim, casa-se Pedro com Custódia Amorim Valcácer, nome recebido pela indígena Cariri após o seu batismo cristão. Dentre inúmeras famílias descendentes deste casal, estão a Fernandes e Freire.

Dando um grande “pulo” na história, e deixando de falar em muitas avós, chegamos a Joana Alexandrina de Jesus casada com o primeiro Francisco Antônio de Assis, proprietário das terras de Condado – ainda povoado. O segundo Francisco Antônio de Assis, casou-se com Anália Formiga de Assis, (Doninha), minha avó materna. Só para fechar esse lado da família, carrego em meu sangue: Formiga, Freitas e os Fernandes de Almeida.

Meu pai, Alfredo Fernandes de Almeida, filho de Maria Monteiro de Sousa, essa, filha de Antônia Monteiro. Estou simplificando essa história, para dizer que a minha primeira avó, a Cariri Custódia Amorim Valcácer (Talvez ainda praticante da antropofagia como fora comum outrora aos habitantes aqui do litoral), já carregava em seu DNA todas nós as mulheres geradas a partir dela.

Conto essa história, apenas para dizer o quanto somos responsáveis por características de gerações após gerações. Essa, também é uma das razões que precisamos conhecer nossos antepassados e o sangue que corre em nossas veias.

Este mês de março dedicado à Mulher é um período muito propício para reconhecermos que precisamos respeitar nossa ancestralidade. Sou muito feliz em saber que em minhas veias corre sangue português, mas sou mais grata ainda a Deus por carregar também sangue indígena. Alguns podem dizer que suas famílias chegaram ao Brasil nas caravelas, a minha se iniciou junto às primeiras mulheres que deram a luz a incontáveis brasileiros desde que o ser humano chegou às Américas mais de dez mil anos atrás.

Das mulheres de nossa ancestralidade sabemos muito pouco, mas pelo que aprendemos com a história, e, sabendo que apesar de todo avanço da sociedade, nós mulheres ainda somos submetidas à violência, ao abuso à desigualdade… custa-me imaginar o quanto nossas avós e mães vivenciaram séculos e milênios atrás.

Me coloco no lugar de minha avó Cariri, que casou com um homem de outro país, falando uma língua que talvez ela jamais tivera ouvido, de costumes estranhos, e quem sabe o que aquela jovem representava para ele? Como ele recebeu aquela mulher que gerou tantos e tantas outras mulheres?

Talvez um amor, talvez um casamento político, talvez o destino de uma pobre mulher condenada a não se casar com um forte guerreiro, mas com um frouxo chorão indigno de ser sacrificado, assado e devorado pelo seu grupo.

Como foi deixar sua tribo e sair em companhia de homem que ela nada sabia dele? Ou será que foi ele o absorvido por sua família? A história conta a vida de tantas mulheres que conheceram seus maridos no dia do casamento, sem ela ter o direito a nada. Apenas como uma mercadoria, fazia parte de um negócio. Será que foi esse o caso? Quantos casamentos foram arranjados? Quantos deram certo? Em quantos houve amor?

Quantas vezes me deitei numa rede na sala principal da casa dos meus avós paternos no sertão e ficava a imaginando como era a vida das mulheres que viveram naquela casa, que tinha uma porta que separava a sala da frente para que as mulheres não tivessem acesso nem aos homens nem tão pouco às suas conversas.

Imagino como viveu minha avó casada com um homem 37 anos mais velho que ela. Era uma menina! Meu avô casou duas vezes, nossa avó foi a segunda mulher dele. Um homem que pouco sorria, nunca soube como eles viviam, mas nunca presenciei nem conversas entre eles.

Entre os anos 1980 e 90, trabalhei com mulheres em comunidades rurais. Aqui do litoral. Nas reuniões que tínhamos, só mulheres, eu perguntava como era a convivência com seus homens. Lembro-me de uma que me disse: “Bom ele dorme na cama (um tipo de banco mais largo, apoiado em pedaços de madeira coberto com palha de coqueiro), eu durmo na esteira no chão. No dia que ele quer me usar, eu subo na cama”.

Estou me referindo aos últimos anos do século XX. Esse depoimento, choca qualquer uma de nós. Mas é a realidade, que talvez não exista mais, mas quantos outros desrespeitos ainda existem?

Quantas vezes presenciei homens formados, com mulheres também formadas, ou seja, com um nível de conhecimento superior às nossas antepassadas, que durante a conversa entre familiares, o marido a manda calar a boca dizendo “deixe de falar besteira, você sabe de nada!”

Esses pequenos relatos são apenas para dizer que precisamos ainda lutar muito por uma sociedade igualitária. As mulheres são vítimas de violência que na maioria das vezes elas nem sabem que vivem num ambiente violento.

Precisamos falar mais de nossa realidade. Já conquistamos muito, mas ainda tem um longo caminho a percorrer.
É com todo respeito, carinho e com sentimento de contribuir para que tenhamos dias melhores que escrevo esse texto. Nesses dias de março, vamos trazer histórias de mulheres que corajosamente, superaram o machismo e desrespeito.

Somos Mulheres, somos uma!

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