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As Marcas do Amor nos Nossos Lençóis

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 No final da década de 1950 a Bossa Nova desponta e traz uma proposta diferente para as despedidas amorosas, falava de um amor alegre, gostoso e de ser a razão de viver. O fim dos relacionamentos não era mais o fim do mundo, era um tempo novo, de novas possibilidades e novos amores. Foi baseado nessa ideia, e por fazer parte desse movimento, que a separação nas canções de Chico Buarque fala de uma dor de superação e uma felicidade futura. Como o próprio Chico afirma em um especial produzido pela Directv:

Essas são as canções de despedidas, sem ser da categoria das canções desesperadas, de fica pelo amor de Deus, aquela que já acabou mesmo, então, vai resolver as coisas práticas. É separação de casal sem aquele desespero que era muito antes dos anos 50. Agora, essa já pós-liberação da mulher, canção bem anos 70 que as pessoas se separavam com mais facilidade, e como se separava naquele tempo e não era tão assim, desesperado, você sabia que daí a pouco você encontrava outra pessoa, não era o fim do mundo, não era mais o meu mundo caiu, como Maysa cantava, acabou o amor nunca mais seria feliz, aquela coisa, as mulheres abandonadas, mentira, logo depois encontravam outro sujeito melhor que aquele (Chico Buarque, 2006). 

Na canção Trocando em Miúdos ele inicia com as coisas práticas de uma separação conjugal: a separação de bens; e os bens, no caso desse casal, têm valor muito mais sentimental que econômico. Na primeira estrofe e na primeira frase começa a separação dos objetos: Eu vou lhe deixar a medida do Bonfim / não me valeu / mas fico com o disco do Pixinguinha, sim? / o resto é seu. Ao que parece o casal teria trazido da Bahia uma Fita do Senhor do Bonfim, um amuleto que segundo a tradição usa-se para alcançar graças, mas, para ele não deu certo, não valeu, ou o relacionamento estava mesmo para acabar. Ele preferia o disco do Pixinguinha, pois para ele era um objeto de mais valor, ligado ao seu mundo, sua preferência; o amuleto, objeto de superstição é próprio do universo feminino, que ver significado nas pequenas coisas, nos objetos, nos pensamentos e até nas palavras. Como definiu Pôncio Pilatos a respeito da sua mulher Cláudia Prócula: 

                                           As mulheres são seres que para os quais tudo é um sinal, a queda de uma folha, o voo de um pássaro, o emprego de uma palavra, a coincidência de pensamentos, a direção do vento, a forma de uma nuvem, os olhos dos gatos ou o silêncio das crianças. Como os adivinhos as mulheres tem tendência a meter o pensamento em tudo, a ler o universo a partir dos objetos e das coisas como um pergaminho. As mulheres não olham, elas decifram. Tudo sempre tem um sentido. Se a mensagem não é aparente, ela está escondida. Nunca há falha, nunca insignificância. O mundo para as mulheres é definitivamente denso. (May, 2008).

 Na segunda estrofe ele resume tudo, fecha o assunto e diz que ela pode guardar na sua memória, nas suas lembranças tudo que sobrou daquilo que eles um dia construíram juntos, da vida rotineira que levou o casal: As sobras de tudo que chamam lar.  E segue enumerando com substantivos e verbos definindo o desgaste de um relacionamento e a impossibilidade de um retorno: sombras, marcas, lembranças, esperança, e os verbos: fomos e ajeitar. 

Chico fala das sombras ou dos vestígios, dos pequenos sinais que ela pode guardar na memória, de tudo que o casal um dia foi e viveu, do poder e da influencia que um tinha sobre o outro: As sombras de tudo que fomos nós. Nessas lembranças o compositor é bem detalhista e pede que as marcas que ficaram nos lençóis, ou seja, a intimidade do casal, os momentos mais felizes que viveram juntos, não era motivo suficiente para um possível retorno, ressaltando que essas foram as melhores lembranças da vida a dois. 

A esperança de uma volta, de uma reconciliação, coisas que acontecem entre os casais quando brigam ou se separam mais de uma vez estava fora de cogitação: aquela esperança de tudo se ajeitar / pode esquecer. Até o objeto que sela o compromisso de amor, fidelidade e união ele pede que ela não só deixe de usar, como pede que ela penhore para ter outra utilidade, porque, a utilidade inicial já não mais existe, ou, derreter para não ficar nada, nenhum vestígio, nenhuma sombra daquele relacionamento e mostra que nada mais os une. Aquela aliança você pode empenhar ou derreter. E ao falar da aliança ele fala com desprezo quando usa o pronome demonstrativo aquela ao invés do pronome possessivo nossa que dá o sentido de posse e união.

Divididos os bens materiais restam os sentimentos: a dor e o orgulho. Apesar de nutrir no seu peito o desgosto e amor próprio, ele segue sem mágoa, sem ressentimento e sem o desejo de vingança. Afirmado nos versos: Mas devo dizer que não vou lhe dar / O enorme prazer de me ver chorar / Nem vou lhe cobrar pelo seu estrago / Meu peito tão dilacerado. Recuperado os sentidos ele volta para as coisas práticas, liberando-a para um novo relacionamento, um novo amor. Aliás / aceite uma ajuda do seu futuro amor / pro aluguel. Depois, lembra-se de outro objeto do seu apreço, seu livro de cabeceira do autor Neruda e pede que ela o devolva, pois, nunca leu.  

Fato consumado o que lhe resta é ir embora, e saí sorrateiro e silenciosamente, e sem deixar nada, nem o barulho no portão. Dos bens levará apenas o disco, o livro e sua identidade, tudo aquilo que o identifica, seu caráter, sua personalidade, aquilo que ele não deixou de ser. E de saideira ele leva muita saudade, e tem a desconfiança que essa atitude deveria ter sido tomada há muito tempo, muito antes. Eu bato o portão sem fazer alarde / Eu levo a carteira de identidade / Uma saideira, muita saudade / E a leve impressão de que já vou tarde.

Nessa mistura de amor, dor e alívio, Chico Buarque foi companheiro de muitos  dos nossos infortúnios amorosos, revelando na sua música os sentimentos que não sabemos expressar em palavras. Foi ele a voz e a personificação de toda uma geração, fazendo uma união perfeita entre os sentimentos e as palavras, colocando a expressão certa em cada momento vivido, em cada emoção sentida. É o arquiteto dos sentimentos mais íntimos, projetista de sonhos e trovador das noites vazias. 

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