Por: Antonio Henrique Couras;
Fazendo jus ao clichê de que nordestino não sabe o que fazer consigo mesmo quando não está um sol de rachar, fiquei a semana inteira cochilando sobre os cadernos. Parece que sem o sol brilhando e o céu azul, meu corpo entendia que eu deveria apenas dormir. Mas na sexta-feira resolvi sair de casa depois que o sol apareceu novamente. Como muitos dos leitores aqui, estava esperando avidamente que a chuva passasse para poder lavar roupa e pô-la a secar. Fui à farmácia, mercado… fazer o que passei a semana inteira adiando para não sair de casa em meio às tempestades.
Quando saí, vi os mangues próximos à minha casa como que flutuando em um espelho. As águas das chuvas os fizeram transbordar. As planícies que os cercam também estavam reluzindo com o sol da tarde. Tudo seria lindo se não fossem algumas casinhas, construídas à beira da estrada. Seus telhados mais baixos que o próprio asfalto, espremidas entre o aterro feito para a rodovia e o mangue preservado. Aquele lindo espelho também chegava a elas.
Fiquei imaginando as famílias que ali moram, debaixo da chuva e vendo a água subir e subir, e entrar em suas casas construídas com tanto esforço no único lugar que lhes foi possível. Àquelas famílias claramente não lhes foi dada autorização governamental para que suas moradias fossem construídas ali, ou melhor, a inércia governamental ante a falta de moradia, lhes deu, sim, a autorização para construírem suas casas ali.
O que me chamou atenção não foi apenas a presença da água, mas a sua permanência. Não era uma enchente passageira, daquelas que se dispersam assim que o sol volta a esquentar. Era um novo estado das coisas, uma nova geografia imposta pelo clima que mudou e continua mudando sem pedir licença.
Os bairros mais pobres são sempre os primeiros a sentir o impacto. Casas construídas sem infraestrutura adequada, em terrenos instáveis, em regiões esquecidas pelo poder público, são as primeiras a serem levadas pela correnteza. Para essas famílias, a mudança climática não é um fenômeno abstrato discutido em conferências internacionais; é a realidade concreta que entra pela porta de casa sem ser convidada.
O problema se repete em cada canto do Brasil. Em Recife, nas palafitas que são engolidas pelas marés mais altas. No Rio de Janeiro, nas comunidades da encosta, onde chuvas cada vez mais fortes transformam barrancos em avalanches de lama. Em São Paulo, onde o concreto não absorve a água das tempestades e alaga ruas inteiras. Cada cidade tem sua própria versão do mesmo drama, mas o elenco é sempre o mesmo: a população mais pobre, que não tem para onde fugir.
E a resposta do poder público? Emergencial, paliativa, improvisada. Quando a chuva castiga, os bombeiros resgatam, os abrigos são improvisados, as doações aparecem. Mas depois que a água baixa, cada família é deixada por conta própria para reconstruir o que puder. Até a próxima enchente, até o próximo deslizamento, até a próxima tragédia anunciada.
A cidade moderna não foi planejada para enfrentar as mudanças climáticas. O asfalto e o concreto dominam os espaços onde antes existiam matas ciliares e alagados naturais. Os rios foram retificados, canalizados, escondidos sob avenidas e viadutos, como se pudessem ser esquecidos. Mas eles sempre voltam. Quando as chuvas vêm mais fortes e mais frequentes, os rios revidam, tomando de volta os espaços que lhes foram roubados.
E diante disso, o que fazer?

Soluções existem, mas exigem vontade política e um compromisso real com justiça social. Urbanização consciente, moradias seguras, investimento em drenagem e preservação ambiental. Políticas que coloquem as pessoas no centro, e não apenas o lucro de empreiteiras e especuladores imobiliários.
É preciso agir agora. Cada adiamento significa mais famílias perdendo tudo. Cada desculpa burocrática significa mais vidas em risco. A mudança climática não está esperando nossa conveniência, nem adiando seus efeitos até que estejamos prontos. Ela já está aqui, transbordando junto aos rios e inundando as casas mais humildes.
Se não encararmos esse problema de frente, continuaremos vivendo dentro de um ciclo cruel: quando o sol volta a brilhar, secamos a roupa e seguimos a vida. Mas sabemos que a próxima chuva virá. E da próxima vez, talvez as casas já não estejam lá para serem alagadas.