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Uma dádiva chamada vida

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Por:  Cristina Couto;

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Chico Buarque de Hollanda cria suas personagens e depois num sopro dar-lhes vida e vida plena, descritas nos versos de suas canções, numa fusão, que com maestria e muita sensibilidade combina letra e música sempre nos presenteando e revelando os sentimentos mais ocultos da alma humana. A canção VIDA da Trilha Sonora do Musical ÓPERA DO MALANDRO é um verdadeiro hino de amor à vida e a todas as manifestações vividas durante o tempo de uma existência.

Na trama, a personagem Geni, é um homossexual que ao se sentir acuada e condenada por tudo e por todos faz uma breve retrospectiva das suas atitudes e do seu procedimento, ora vulgar, ora carente, que compôs sua trajetória de vida. Ela fala de três dos seus muitos amantes, homens que marcaram profundamente sua vida ao ponto de questionar se a relação valeu a pena. Foram experiências marcantes afirmadas pelos verbos: deixar, verter e tocar num sequência crescente de entrega.

A melodia nos remete ao constante movimento, oscilação, velocidade e expectativa que a vida se apresenta. Cada instrumento musical e seu som característico dar vida e sentido aos momentos e sentimentos apresentados e enfrentados na vida. O trompete abre com um som de expectativa, de apresentação em grande estilo, uma espécie de grandeza, de show da vida. O violino simboliza as fases de sonhos e solidão vividas, o trompete volta com o som mais baixo mostrando a normalidade e o cotidiano nosso de cada dia.

Os ritmos vão sendo intercalados com outros instrumentos que mostram os altos e baixos pelos quais a vida passa, e as mudanças naturais que acontecem ao longo dela. Outros compassos entram na melodia representando as muitas etapas da vida: o mambo nos remete a velocidade e expectativa da vida, já o bongô um ritmo mais suave, lento até relaxante nos aponta aqueles dias de calmaria e de repouso.

Os instrumentos ritmados destacam o espírito da música, as diversas fases da vida e sua oscilação natural. Dentre os sons há um que soa durante todo o desenrolar da música, o som de um chicote, sugerindo as chicotadas dadas pela vida, representando ou apresentando os momentos de dor, de aprovação e desafios.

A letra narra à dor, as lamentações e os questionamentos de um homossexual que se sente discriminada, apontada, usada, abusada e excluída pela sociedade. Seu jeito de viver escandaliza, escracha e espelha a hipocrisia daqueles que a rejeita, que se escondem atrás de atitudes preconceituosas num eterno disfarce dos seus desejos mais profundos, muitos deles são seus amantes, ou, pretendem ser, ou, quem sabe não queria ser como Geni:

livre, autêntica, assumida e disponível. Ser de verdade, ser aquilo que se propõe a ser, ser convicta dos seus valores, mesmo que não obtenha vantagens com eles, e esteja fora do padrão estabelecido, peça fora da engrenagem da sociedade de resultados.

Todas essas atitudes entristecem e deprimem Geni ao ponto dela duvidar e até se mostrar arrependida, se sentir culpada dos seus envolvimentos casuais e sexuais. Dentre os questionamentos feitos por ela o tempo perdido é o mais evidente. Ela se pega em pensamentos duvidosos e passa a ver o tipo de vida que leva e os homens com os quais se envolveu, trocou afetos, ou apenas, entregou seu corpo. Foram homens de vidas distintas, cada um trazia valores próprios do seu meio social, dos seus costumes e de suas profissões ou a ausência deles, eram pessoas de todos os níveis sociais, de todas as idades e de todos os gêneros.

Ao analisar seus relacionamentos se deparou com o tempo desperdiçado, tempo de entrega, tempo perdido, tão perdido quanto os homens com que ela se envolveu, deixando a fatia mais doce da vida na mesa de homens abastados, homens de posses e sem conteúdo, um relacionamento superficial, tão superficial quanto à vida do seu amante. Pessoa de VIDA VAZIA que tratam as relações como objetos que depois de adquiri-los e usá-los perdem a função, o interesse e procuram livrar-se deles.

A fatia da vida, a qual, Geni faz referência parece ser a juventude, a fase mais doce da vida, a fase da alegria, da festa, sem compromisso e sem responsabilidade. Apesar dos contratempos, arrependimentos e sofrimentos que esse relacionamento trouxe ela ver algo de positivo, de proveitoso e sente que toda sua doação não foi em vão, trouxe uma recompensa, embora, com um pouco de dúvida (quem sabe?) quando diz: mas; vida, ali quem sabe, eu fui feliz. Serviu como aprendizado, como experiência. Valeu.

A Mesa que aparece no verso: na mesa dos homens de vida vazia demonstra que tipo de pessoa ela se relacionou, de qual casta social ele pertencia, se ver que era um tipo educado, de fino trato, de posses, ou, homem de negócios. Pois, é na mesa que se negocia, se faz refeições e se reúne com os amigos. Para homens com esse estilo de vida a mesa é um símbolo, uma referência, a maior parte da vida deles é em torno de uma mesa, tanto no trabalho quanto em casa ou nos momentos de diversão.

No segundo verso ela recorda outro tipo de homem até mais interessante, mais ousado, mais envolvente e bem mais parecido com seu jeito de ser, ele também deitou na sua cama e se relacionou com ela. Esse homem era um sujeito mais intenso, mais forte, mais atirado e mais sexy. Neste caso ela não apenas deixa sua vida, agora ela derrama, ela verte nos cantos, na pia, dentro da casa de homens que fazem amor em todos os lugares da casa, mostrando um amante desleixado, largado, livre, são HOMENS DE VIDA VADIA, sem compromisso, sem amarras. Foi tão intensa e passageira a relação que chegou a ser vertida, gostosa, até deleitosa, mas sem solidez suficiente para durar, era liquida e escorregadia como a vida na sociedade líquido-moderna composta de membros que mudam num tempo tão curto seus hábitos, suas rotinas e suas formas de agir que não se dão conta da necessidade de tempo para sua consolidação. Fugaz.

A Casa, ao contrário, da mesa mostra o lugar de intimidade, de familiaridade e estilo de vida mais despojado, atirado, sem preocupações, inclusive com o espaço utilizado, não ver a sua casa como um lugar sagrado, um santuário e nem escolhe lugar para a prática do sexo, pode ser em qualquer lugar ou em todos os lugares: nos cantos, na pia, na casa dos homens de vida vadia. Mais uma vez ela se sente recompensada, uma recompensa duvidosa, quando diz: mas, vida, ali quem sabe, eu fui feliz, uma felicidade como suposição e não como afirmação. O momento vivido foi bom e intenso, porém passageiro, sem vínculo, sem raiz.

Na quarta estrofe, ela narra mais uma experiência vivida, agora é uma experiência nova e com outro tipo bem ou totalmente diferente de todos que ela provou. O sentimento nutrido é algo mais profundo, que mexeu com sua essência, sua alma, expresso na frase: toquei na ferida, nos nervos, nos fios. O verbo deixar sentido na sua primeira experiência se apresenta na sentença como abandono, aceitação. Já o verbo verter na sua segunda experiência é o mesmo que entornar ou derramar ou transbordar, e agora foi substituído pelo verbo tocar, aproximar, bulir, mexer na sensibilidade, nas profundezas da alma, lugar onde moram os mais sutis dos sentimentos: nos nervos, na essência, na energia, na fibra e nos fios como condutores desses sentimentos que saltam aos olhos, olhos sombrios, carregados de tristeza.

O lugar ocupado por ela não é mais um lugar físico: na mesa, na casa é o lugar dos sentimentos, ela não mais deixa e nem verte, ela toca não com as mãos, toca com sua alma, com sua sensibilidade. O simples toque nos nervos e nos fios ultrapassam todos os sentidos, entrelaçando, ligando em todos os pontos vitais: o centro nervoso (nervos), os fios (veias) e até o globo ocular (olhos) que sendo obscuro (sombrio) esconde por trás do olhar uma realidade dura de vida, uma troca de experiência, onde o objeto do desejo não é mais o corpo, é algo mais profundo, é algo que está dentro da alma, do ser. Com o toque da alma ela penetra a alma do amante numa reciprocidade, numa troca. Nesse momento ela afirma ter encontrado a felicidade: MAS, VIDA, ALI EU SEI, QUE FUI FELIZ. Há uma afirmativa: EU SEI. Sem mostrar dúvidas: a felicidade é verdadeira.

Criando mais expectativa e dando vida ao espetáculo da vida, Geni se apodera da célebre frase de Goethe: luz, quero luz, que se acende num primeiro palco, o da vida, se descortina e depois dela tem várias outras cortinas com palcos atrás, que vão se abrindo em muitas outras cortinas, outras vidas numa só vida, sendo reveladas em um novo espetáculo, com outros palcos que se sucedem com a abertura de novas cortinas, novos cenários, podendo atribuir as diversas fases e circunstâncias da vida, a velocidade e mutação da vida até culminar na morte, a derradeira fase da vida, e a cor azul da última cortina pode ser em referência ao céu, o lugar que se acredita ser a morada dos mortos ou a morada eterna, onde tudo é azul, expressão usada como definição de paz, de tranquilidade e calmaria.

Outra interpretação seria a Teoria da Reencarnação, várias vidas vividas numa só vida, mudando de identidade, de corpo, mas sempre com a mesma alma, ou, uma referência ao poema de Fernando Pessoa: Todas as vidas que eu outrora tive, numa só vida, podendo, ainda, ser interpretada como as muitas personagens que estão dentro de cada um de nós, e que se apresentam no palco da vida quando sentem necessidade, ou mesmo, sem serem anunciadas, por puro instinto.

Depois de ter vivido intensamente a vida com todos os percalços que ela se apresenta, apesar das dúvidas, culpas, arrependimentos, e batalhas travadas por Geni, seja de foro intimo ou por batalhas externas, tudo foi combustível que impulsionou a sua vontade de viver e viver demasiadamente até as últimas consequências, até estufar: estufa, veia e estufa, outra vez ela vai ao limite da vida com todas as emoções que tem para sentir, agitar, abalar, palpitar: pulsa, pulsa, pulsa, pulsa mais.

A personalidade intensa de Geni e sua avidez pela vida de sempre quer mais e mais, do desejo incessante de desfrutar tudo que a vida possa lhe proporcionar: mais, quero mais, mesmo que tudo e todos estejam contra as suas atitudes, ou, se afastem dela pelo seu estilo de vida: nem que todos os barcos recolham ao cais, mesmo ficando sozinha e sendo alertada, ela não se importa segue vivendo profundamente a vida do jeito que gosta, quer e sabe viver: e os faróis da costeira me lancem sinais.

Ao atingir o ápice da vida ela busca força e arranca mais vida e segue mais longe na expressão: estufa vela, navegando para outros horizontes e outras vidas num eterno caminhar: me leva, leva longe, longe, leva mais. Vivendo intensamente e infinitamente sempre numa perspectiva crescente de vida e de sentimentos. Somente quando tomou consciência e assumiu seu verdadeiro ser, sua essência e seu papel na vida ela encontrou a felicidade, vivendo em eterna harmonia entre o espírito (natureza) e a matéria (homem).

No final da canção Geni volta ao palco e antes de baixar as cortinas ela declara em tom afirmativo como prestando conta dos seus feitos, agora, consciente dos seus atos. Afirma: vida, minha vida, olha o que é que eu fiz!

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