Por: João Vicente Machado Sobrinho;
A religiosidade e a crendice, são dois predicados que sempre caminharam juntos e de mãos dadas com o Homo Sapiens. Ambas estão arraigadas no cotidiano e na cultura das pessoas, notadamente da população mais humilde e carente.
O sertanejo nordestino, que tem na água e por extensão nas chuvas a sua esperança de sobrevivência, confere à religiosidade e às crendices um status de dogma de fé, em tudo que ele faz. É por essas e por outras, que fenômenos naturais como: a mudança das formigas, o canto da acauã ou do carão, o escaramuçar matinal dos bezerros ou dos potrinhos, a umidade das pedras de sal, a barra do Natal, o dia de São José, entre outros, estão contabilizados no relicário das crendices, e são revestidos do maior crédito e fervor.
No entanto, se as experiências naturais não forem convincentes, ele se apegará ao lenitivo da religiosidade. Assim estabeleceu como prazo fatal o dia 19 de março, consagrado ao Sr. São José, como o data limite para a declaração ou não de mais uma seca. A grande maioria do nosso povo, ignora que a data é quase coincidente com a passagem do equinócio de outono que ocorre entre 20 e 21 de março.
Na sua humildade característica e subida benevolência, o sertanejo sem jamais desprezar as suas convicções, tem ouvidos para ouvir também às ciências. Chega ao ponto de celebrar um “casamento” pacífico e harmonioso com a academia, como ocorreu há 28 anos passados e ainda hoje se repete na cidade de Quixadá no Estado do Ceará.
Naquela cidade, o Ministério da Cultura e o Instituto de Pesquisa de Violas e Poesia e Cultural Popular do Sertão Central, promovem anualmente, o Encontro da ciência com os Profetas da Chuva. Uma tradição anual que marca o início do calendário cultural da região, que nesse ano de 2024 foi realizado em 13 de janeiro.
Esse encontro, é considerado o maior do gênero no país, e destaca-se como um dos mais importantes meios de preservação do conhecimento tradicional, transmitido de geração em geração pelos profetas da chuva.
Muitos dos famosos expoentes da religião católica, uma das mais antigas do mundo ocidental, chegaram a tirar partido da crendice popular para enfatizar os desígnios divinos, de modo a alcançar o propósito de beneficiar o coletivo.
O que foram as dez pragas do Egito tão bem exploradas por Moisés como instrumento de convencimento do Faraó, senão o uso da crendice?
Moisés era um líder religioso, juiz e profeta muito sábio, que chegou a ser reconhecido como representante de Deus, tanto pelo judaísmo, quanto pelo cristianismo e pelo islamismo. Reza a lenda que Moisés foi criado no palácio do Faraó, e teve contato com os iniciados e com os sábios e os doutores da época, com os quais conviveu, adquirindo uma robusta e sólida cultura.
A despeito disso, e mesmo com toda sua sabedoria, Moisés tinha dificuldade de comunicação através da fala. Para fazê-lo era obrigado a se valer em primeiro lugar da crendice do povo, e da eloquência do seu irmão Aarão, um orador de renomada, e hábil mobilizador das massas. Por conseguinte, Aarão tornou-se o alter ego de Moisés e por ele era encarregado de organizar e mobilizar os hebreus na longa marcha que deveriam empreender em busca da chamada terra de Canaã.
Mutatis mutandis, influencias como essa, vimos acontecer também no Brasil, onde o uso do misticismo por lideranças religiosas e políticas são práticas de caráter popular, quase todas elas orientadas por lideranças religiosos.
Na Revolta do Contestado, na região fronteiriça entre Santa Catarina e o Paraná, a liderança religiosa era do Monge ou profeta José Maria, quando a liderança da frente de luta ficava à cargo de Adeodato Ramos.
Na Guerra de Canudos, a mais intensa e conhecida da nossa história, a grande a liderança mística e inspiradora era do líder religioso Antônio Conselheiro. No entanto, a liderança à frente dos combates era de autoria de João Abade para rechaçar os ataques ao arraial de Belo Monte, e de Antônio Pajeú, na luta de guerrilhas onde o fator surpresa foi responsável pela derrota de três das quatro expedições do exército brasileiro.
No Juazeiro do Norte a grande e incontestável liderança religiosa era do Padre Cicero Romão Batista, que tinha como alter ego o médico baiano radicado no Juazeiro, Floro Bartolomeu.
É possível perceber claramente, que todas as lideranças populares citadas, tais como: Adeodato Ramos, João Abade, Pajeú e Floro Bartolomeu eram alter ego das lideranças religiosas que interagiam com a crendice popular. De uma maneira ou de outra exerciam forte influência nos líderes religiosos e o caso mais relevante foi Floro Bartolomeu.
O misticismo, portanto, está presente no semiárido nordestino, uma ampla extensão territorial onde vivem mais de 56 milhões de habitantes. A escassez de chuvas e por conseguinte de água é uma característica climática que induz as pessoas ao simbolismo da crendice.
São conhecidos vários santos milagreiros entre eles Santa Luzia e São José, aos quais são creditados com muita crença e fervor, os milagres climáticos que trazem as chuvas.
Anualmente, aos 13 dias do mês de dezembro repetem-se em todos os rincões do interior do nordeste, a famosa experiência das pedras de sal, onde A Sra. Santa Luzia é a divindade. Na sequência, o dia 19 do mês de março, dia consagrado ao Sr. São José, que é um marco definidor do início mesmo que tardio, da estação das chuvas que chamam inadequadamente de inverno. Em relação à falta de chuvas, o poeta popular e acadêmico da Academia Cearense de Letras Geraldo Amâncio, certa vez disse como muita inspiração.
“No sertão quando o inverno não vem
Só se encontra desolação e mágoa
No riacho não vê-se um pingo d’água
Sopra um vento assombroso do além.
Seca o tronco robusto do muquém
Cai a folha mais grossa murcha a fina
Toda árvore emurchece e se inclina
No calor do sol quente verga as costas
Parecendo um fantasma de mãos postas
No altar de uma seca nordestina.”
A rigor, o famoso milagre da Sra. Santa Luzia se processa da seguinte maneira: na noite de 12 de dezembro colocam-se enfileirados numa tábua, seis pedras de sal ou seis montinhos se o sal for moído. Em seguida enfia-se a tábua no frechal do telhado das casas. Cada uma daquelas pedras corresponde a um mês, contados a partir de janeiro até maio. Na manhazinha do dia 13 de dezembro, verificam-se se as pedras ou os montinhos de sal molharam a tábua no seu redor. Se isso acontecer é um forte indicio de que ocorrerão chuvas no decorrer do período. Do contrário é um prenuncio de seca.
Com relação ao 19 de março, a depender do 13 de dezembro a data pode ser louvada com uma procissão de louvor e apelo ao Sr. São José para que chova até aquele dia. Se acontecerem as bem-ditas chuvas é sinal de inverno por interferência de ambas as divindades
Pela ótica das ciências existe uma explicação científica para ambos os casos que iremos apresentar, afirmando de antemão que ambos “os milagres” têm o amparo e explicação cientifica, começando pelo dia 13 de dezembro consagrado a Santa Luzia.
Quando os estudos do clima evoluíram e foram adquirindo caráter cientifico, naturalmente se desenvolveu um instrumental meteorológico cada vez mais sofisticado, para projetar não milagres esporádicos mas consistentes prognósticos climáticos, onde os principais indicadores são: a temperatura, a umidade, a pressão atmosférica e a radiação, entre outros.
Tornou-se assim possível indicar com um alto índice de acerto, o período mais provável das chuvas. Constatou-se o óbvio que, para chover é necessário existir umidade suficiente para a condensação e precipitação das nuvens. Ora, se houver umidade suficiente no mês de dezembro, é mais do que natural que o sal que é muito sensível à água, umidifique e fatalmente provoque uma mancha na famosa tábua usada na experiência da Sra. Santa Luzia. Sem embargo, havendo umidade certamente haverá chuva. Ponto!
Com relação à data limite do dia 19 de março consagrado a São José, é preciso ter em conta que ela é colada com a data da passagem do equinócio do outono. Nesse ano de 2024 ele ocorreu no dia 20 de março, as 00h:06min e se estenderá até a chegada do solstício do inverno, que neste ano de 2024 ocorrerá em 21 de junho, as 17h:05min.
Como a estação chuvosa no nordeste brasileiro acontece historicamente entre o fim do verão e no decorrer do outono, o dia consagrado a São José, naturalmente é determinante.
Que fique bem claro que como ateu não queremos de maneira alguma desmerecer as divindades por respeitarmos, e muito, a crença das pessoas. Tampouco queremos nos indispor nem com a Sra. Santa Luzia nem com o Sr. São José, e pelo contrário, temos por eles grande respeito. Contudo, se as datas consagradas a ambos fossem nos meses de agosto ou outubro, seria um sério problema para a crendice arranjar chuvas.
No creo em las brujas, pero que las hay, las hay!
Referências:
‘Profetas’ preveem volume de chuva com observações de cupins, formigas e pássaros; entenda | Ceará | G1 (globo.com);
Há 100 anos, o fim da sangrenta Guerra do Contestado — Senado Notícias;
Qual a participação de João Abade e Pajeú na Guerra dos Canudos?? ME AJUDEM PLISSSSS!! – brainly.com.br;
Cantigas e Cantos: Poesia: “O Sertão em carne e alma”, uma obra prima de Ivanildo Vilanova e Geraldo Amâncio;
Fotografias:
Solstício e equinócio: o que são, diferenças e datas em 2023 – Toda Matéria (todamateria.com.br);
‘Profetas’ preveem volume de chuva com observações de cupins, formigas e pássaros; entenda | Ceará | G1 (globo.com);
R7 – Notícias do Dia no Brasil e no Mundo.Moisés e Aarão;
A guerra do contestado – Pesquisa Google;
Portal MultiRio-O conselheiro;
Facebook-Santa Luzia;
Facebook-São José;
Poeta Geraldo Amancio Academia Cearense de Letras – Pesquisa Google;
Tradição das “pedrinhas de sal” segue viva em Mossoró – TCM Notícia (tcmnoticia.com.br)
Estação Meteorológica Com Sensores Sem Fio EMW-RX – Sigma Sensors;