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João Pessoa

Isso de ser artista

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Por: Antonio Henrique Couras;

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Vou pedir licença ao leitor, inicialmente, pela imodéstia de me chamar de artista, segundamente, pela compreensão de que as linhas que aqui traço não o faço por vontade, mas por obrigação.

Por mais que eu já tenha investido nas aulas de desenho, canto… não possuo a destreza necessária para desempenhar nenhum dos outros ofícios agraciados com o título de “arte”. Fico cá sob a égide de Clio, a musa da escrita, aquela que nos presenteou com o alfabeto (um outro que não esse latino, é verdade).

O mito grego diz que Clio, junto com suas irmãs, são filhas de Zeus com Mnemósine, a deusa da memória, e, juntas com Apolo, inspiram artistas e governantes com suas habilidades.

Acredito que desde sempre Clio vem colocando papel e lápis em minhas mãos (é verdade que agora se vale dessas pequenas teclas que aperto canhestramente com apenas três dos meus dez dedos), mas sempre soube bailar com as palavras como uma exímia rendeira joga seus bilros pra lá e pra cá, pontuados seus nós com seus alfinetes. Meu ofício não é muito diferente, verbos para lá, sujeitos para cá. Uma vírgula, um complemento, um ponto. Assim, de frase em frase teço um texto.

Mas a filha da memória não poderia ser apenas a musa das letras e palavras, Clio nos inspira a escrevermos histórias, e eu venho descobrindo que tenho muitas a contar. Todos temos, mas eu tenho um caderninho mental em que vou anotando fatos cotidianos que acredito serem dignos de comentários. E aqui o faço. Por isso digo que o faço por obrigação. O artista não produz sua arte porque quer, mas porque precisa. Que faria eu sem despejar minhas palavras aqui? Como organizar minhas ideias e pensamentos, como contar minhas histórias sem ser batendo nessas teclinhas pretas?

Peço sinceras desculpas se minhas palavras já trouxeram dor, incômodo ou sofrimento a quem quer que seja, mas “como diz o outro”, não se pode fazer uma omelete sem quebrar os ovos. Não posso ser sincero em minhas reflexões sem dar nomes aos bois.

Acredite, se não há nomes não há bois, e se os bois são mencionados, o são por unicamente estarem lá, como um pedestre pego desavisado numa fotografia de uma rua movimentada. Não o faço por mal, muito menos premeditadamente (a querida Gorette pode afirmar em primeira mão que quando meus textos sempre são entregues, o faço na última badalada).

Quando era pequeno cismei que queria ser padre. Desisti quando descobri o voto de pobreza e a correspondente dieta dos religiosos. Mas acredito que tirando isso teria sido um bom sacerdote, principalmente no que se refere às confissões: esqueço quase tudo imediatamente após que me é dito. “Vá e não peques mais, meu filho” diria acenando a mão com dois dedinhos e balançando as largas mangas da sotaina. Provavelmente estaria mais preocupado com o coitado e sua culpa que com o pecado em si. Nem o Salvador se acanhava em perdoar um pecado, imagine eu.

A coisa do sacerdócio, seja ele qual for, é muito mais sobre aquele que nos procura em busca de ajuda que propriamente sobre a ajuda em si. O padre determina os pais-nossos e ave-marias quase como um médico prescreve um remédio para aliviar os sintomas. O pecador receberá o perdão do altíssimo e de si mesmo se não recair no pecado. Se debulhar um ou dois rosários o ajudar, que seja muito feliz.

Não muito diferente, é um médico que recebe um paciente em busca de ajuda. Se a doença for incurável, cabe ao paciente aprender a viver com ela; se a enfermidade, por outro lado, tiver cura, também cabe ao paciente tomar os remédios ou se submeter ao procedimento. O cirurgião pode remendar, pontear e medicar, mas a cura quem obtém é o paciente.

Não adianta ir ao dentista para curar dores de dente se não escovamos e passamos o fio dental. A dor passará, o profissional com seu infernal motorzinho cumprirá com seu ofício. Colocará a resina ou o amalgama de metais na cavidade em que a cárie foi despejada. Mas se a sua escova de dentes juntar poeira enquanto seus dentes acumulam tártaro, o pobre profissional nada tem com isso.

Seja padre, médico, dentista, artista… nosso ofício tem seus limites. É verdade que muitas anedotas que conto são embelezadas (quem conta um conto, aumenta um ponto). O próprio Ariano Suassuna contava de um mentiroso que vinha “cultivando”, e que esse afirmava ser filho de um apicultor que conseguira duplicar sua produção melífera ao conseguir cruzar abelhas com pirilampos. Esses híbridos, então, conseguiam produzir mel dia e noite devido à nova espécie ser capaz de trabalhar dia e noite na busca do néctar das flores iluminados com seus traseiros luminosos. A mentira era evidente, mas a estória não podia ser melhor.

Calíope, às vezes, por pena, me ajuda com o seu dom da retórica, mas Erato, Euterpe, Melpomene, Poliminia passam longe de me ajudarem com seus dons do canto, poesia, o contar das tragédias, ou os hinos aos deuses. Terpsícore rodopia longe de mim com suas habilidades de dança. Urânia, responsável pela astronomia, só me permitiu achar, no céu noturno, o Cruzeiro do Sul e as Três Marias (que ela chamaria de Cinturão de Órion). Clio, Calíope, e vez por outra, Tália, a musa das comédias, aparecem aqui para me soprarem, na concha da orelha, coisa ou outra.

Ainda que assistido pelas irmãs, inspiradoras dos escritores das comédias e tragédias gregas, por pura incompetência minha, me limito à história, essa com “h” minúsculo mesmo, nem as estórias que vão aos palcos ou encantam, nem a grandiosa com “H” maiúsculo que conta os grandes acontecimentos do mundo. No máximo, aqui e acolá, aumento um ponto ao contar meu conto, faço uma graça ou consigo explicar bem alguma coisa.

Pela natureza do fio com que teço minhas histórias não posso usar da omissão. Não tenho grandes batalhas a narrar, versos com que fazer rima… me sobra esse fio de fibras curtas que é o cotidiano, o florescer do jardim, um gato que sobe na mesa ou as noites iluminadas com as velas que faço na cozinha de casa. Me impedir de falar do que vejo, o que sinto ou do pouco que me lembro, é como cortar a língua de um cantor ou as mãos de um pintor.

Minha arte, esse ofício, é uma obrigação, um sacerdócio que exerço para que aqueles que leem essas palavras possam, como eu, chorar de saudades de alguém ou sorrir com a travessura de um gato. Apreciar a beleza do passo lento que leva o andor com o santo de barro.

 

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