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A saudade me persegue

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Por: Cristina Couto;

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A saudade é um sentimento inerente de minha alma e acho que já nasci sentindo saudades, na minha tenra infância sentia saudades do tempo que não vivi, de pessoas que nunca conheci, de lugares nunca vistos, de momentos que não vivi, sentindo o cheiro familiar de outrora sem a menor identidade com o presente e nem com o passado. Durante anos sonhava com a mesma casa, o mesmo lugar e uma longa estrada que dava acesso a tudo isso. A casa sempre com a mesma mobília, os mesmos espaços repletos de pessoas que estranhamente me sentia familiar.

Hoje a minha saudade é de um tempo vivido; de um tempo não esquecido, das tardes alegres e divertidas com os amigos, dos piqueniques, dos bilhetes escondidos, das conversas na Praça da Matriz, das tardes felizes no Bar de Seu Zé Alves, do apito do trem que rasgava a madrugada, do chirriar das corujas moradoras da torre da Matriz de São Vicente Ferrer, do assobio de Raimundo Caminhão indo para o açougue, dos gritos matinais de seu Souzinha, e daquela vida inocente, pacata e sem pretensão nenhuma.

Nossa vida era sem muitas novidades, conhecimentos só mesmo do rádio e dos livros da Biblioteca Pública, ou das residências de famílias mais intelectualizadas. Na minha casa tinha uma boa biblioteca com algumas enciclopédias famosas da época, os clássicos brasileiros, os livros espíritas do meu pai, a Bíblia Sagrada em sete volumes da minha mãe, que nunca os leu, fascículos da Abril Cultural, a Enciclopédia Universal, a coleção dos Contos de Infantis dos Irmãos Grimm, um Aurélio Buarque, um Dicionário de Língua Inglesa bastante volumoso que nunca consultei por ser avessa a outro idioma, e uma coleção de Gramática contendo 14 volumes de capa dura verde. Mas o meu fascínio mesmo era pela Biblioteca do Colégio Agrícola, e vou explicar por que.

Quando completei oito anos de idade meu pai foi nomeado diretor do Colégio Agrícola de Lavras da Mangabeira.  Ao assumir o cargo meu pai encontrou um Colégio cheio de vícios, para uns tudo, já para outros nada e a corrupção corria frouxa. Como gestor meu pai era muito rígido, honesto e justo. Nunca usufruiu nem das vantagens que o cargo oferecia.

Prezava pela pontualidade e assiduidade, motivo de muitos problemas e malquerenças. A casa em que morávamos ficava a poucos metros do Colégio e uma das suas determinações era a não circulação de crianças nas dependências da escola, o que servia para seus filhos também.

Acontece que eu gostava de algumas particularidades que lá existiam: as bolinhas de carne feitas por Seu Antônio Preto, cozinheiro de mão cheia e dos livros da biblioteca. Sem que meu pai soubesse eu caminhava por uma vereda que ligava a residência do diretor a cozinha, já com uma pequena tigela nas mãos entregava pela porta dos fundos, e ficava quietinha aguardando aquela deliciosa comida que satisfazia o paladar e a minha alma de criança inquieta. Como se diz no interior: ia num pé e voltava no outro. Rapidez era sinal de segurança.

Não conto às vezes que percorria a mesma vereda e sempre pelos fundos chegava ofegante a biblioteca. Lá, sentada no birô estava a doce amiga e simpática Joísa Correia, sempre me recebeu com um largo sorriso e aquela alegria toda. Depressa me enfiava entre as estantes que ficavam em todo o espaço da sala e ia certinha na “Coleção Mitologia Brasileira: Lendas da Amazônia.”

 

Os livros eram grandes, capas rígidas, papel fotografia, desenhos bonitos, coloridos e bem chamativos. A cada lenda uma bela ilustração. Eu ficava fascinada com as estórias e com os livros; enquanto me maravilhava e sonhava com o mundo encantado da Amazônia e suas lendas incríveis, Joísa confeccionava bonecas de papel e suas roupas exuberantes, uma para cada ocasião. Habilidade e talento criativo era uma característica sua. Algumas folhas de cartolina, um lápis grafite, uma caixa de lápis de cor e algumas folhas brancas ela criava o mundo, o mundo da moda e da elegância. As bonecas variavam entre as louras de olhos claros e as morenas de olhos e cabelos na cor preta e marrom. Todas muito bem pintadas e com roupas que acompanhavam a moda do momento. Foi nesse tempo que descobri que tudo na vida tinha cor e que aquele espaço emanava luz, cor e conhecimento. Talvez tenha sido nesse tempo que descobri haver luz em todas as coisas, e a leitura era a porta do conhecimento.

Nossa vizinhança era pequena, composta de três casas, uma morava o diretor, era uma casa ampla, alpendrada, com portas e janelas arrojadas, quadro banheiros, um deles tinha uma banheira, uma pia larga, sanitário e bidê, e o espaço onde ficava o chuveiro. Todas as paredes eram revestidas com azulejo branco, o que se podia considerar um luxo para época; duas cozinhas com pia, balcão e armários embutidos, as paredes, assim como os banheiros eram revestidas com azulejo, suíte do casal, cinco quartos, sendo três ao longo do corredor, um de hospedes e uma dependência de funcionário. Uma sala grande e uma copa com uma despensa para guardar mantimentos. Energia elétrica e água encanada.

A outra casa era muito parecida com a residência do diretor, apenas um pouco menor, mas com todos os compartimentos que a outra tinha. E existia uma terceira casa, essa muito pequena e nada parecida com as outras duas. Entre as três tinha uma frondosa árvore que abrigava as aves, nossas conversas e brincadeiras. Logo que chegamos, uma das casas funcionava o Curso de Extensão com aulas de Arte culinária, Corte e Costura; Bordado, Tricô e Crochê, além das aulas de Boas Maneiras, cursos voltados exclusivamente para o sexo feminino. Pouco tempo depois o Curso de Extensão foi extinto e a casa ficou ociosa e a disposição dos professores e funcionários que quisessem ocupá-la.

Nossos vizinhos se renovavam muito e a cada dois anos havia uma mudança. Foi nosso primeiro vizinho o casal Iranilda e Francisco Ferreira Lima. Lembro-me muita de Dona Branca, sogra de Iranilda, uma senhora simpática, gostava de contar histórias de sua vida, passava tempos na casa do filho; como sabia costurar seu dia era junto à máquina de costura e eu ficava ao seu lado ouvindo suas histórias, e fazendo mil perguntas. Acho que não moraram muito tempo e logo recebemos novos moradores.

 

Nessa época o Colégio Agrícola de Carpina/PE fechou suas portas e seus funcionários foram transferidos para outras unidades. Lavras recebeu dois professores e suas famílias: Santa Cruz e José Luiz, o primeiro professor de matemática e o segundo de Educação Física . O professor Santa Cruz era um homem alto, magro, cabelos longos, barba, sério, calado e observador; tinha cara de gênio. Era um tipo estranho, na minha cabeça de criança era um tipo daqueles personagens gênio cientista. Hoje entendo sua solidão, penso ter sofrido muito, pois não é fácil ser possuidor de grande conhecimento em terra de pouco. O segundo era um homem de estatura mediana, cabelos curtos e cacheados, serio e compenetrado, com ar de militar. Além de educador físico era regente da banda marcial do colégio. Preciso, exato e firme a apresentação da banda era impecável na afinação, no compasso e no desempenho. Todos os dias sete de setembro era a atração da cidade, dava verdadeiro show em frente ao prédio da Prefeitura antes do hasteamento da bandeira. Todos paravam para ver, ouvir e dar passagem.

Nessa época a vizinhança era muito animada, cheia de jovens e crianças a correr, jogar e conversar no terreiro, nos alpendres ou dentro das casas. Santa Cruz era pai de três jovens, um pré-adolescente e uma criança. Na casa de José Luiz eram dois jovens, um pré-adolescente e uma criança. Na minha casa éramos três crianças (eu com dez anos, meu irmão com nove e minha irmã um ano). À noite, depois do jantar as brincadeiras pareciam sem fim e a felicidade tomava conta de nós. Problemas? Tinham aos montes. A diferença que os menores não se envolviam com coisas dessa natureza, era coisa de adulto. Hoje vejo que nossos pais estavam certos, realmente, criança vivia como tal. Na nossa casa tínhamos responsabilidade, limite e liberdade, além de respeito.

 

Talvez esses tenham sido os anos mais prósperos do Colégio Agrícola, um tempo de muita troca de conhecimentos, eram trezentos internos de vários Estados do Nordeste brasileiro e de muitos professores que também vieram transferidos de outros lugares. Os desfiles do Dia Sete de Setembro eram verdadeiros espetáculos, com temas contando a História do Brasil, foi nesse tempo que o professor Zé Luiz com muita maestria transformou a Banda do Colégio em uma verdadeira Banda Marcial, dando show de musicalidade e coreografia. O Colégio tinha um Trio Musical, que sempre se apresentava em eventos da Escola, chamado Trio Bananeiras, pois seus integrantes eram paraibanos, do Município de Bananeiras.

Rapazes talentosos e animados, assim como eram os jovem daquela época. Nana, Roberto e Marcha Ré eram seus nomes artísticos. Foram eles responsáveis por muitos movimentos musicais e festivais dentro da própria escola. E antes que eu esqueça, o Colégio tinha um time de Futebol que competia com outros grandes times e foi vencedor de alguns campeonatos. Apesar da rigidez e austeridade com que meu pai conduzia o Colégio, ele sempre apoiou incondicionalmente os movimentos culturais, artísticos e esportivos daquele educandário. Era um amante da música, das artes e do futebol.

Dois anos se passaram e os nossos vizinhos voltaram para seu lugar de origem e novos vizinhos chegaram. Dessa vez chegou o casal Dona Yvone Macedo e Seu Moreira com seus filhos: Manoel, Ricardo e Júnior, pois Yvonise, sua filha mais velha estava recém-casada.

Lembro-me de tudo com muitas saudades e boas recordações, aquele foi um período de grande aprendizado, as conversas com Dona Yvone despertaram em mim sabedoria e lições de vida que guardo até hoje dentro do meu coração. Em minha opinião foi a mulher mais sábia, inteligente e determinada que conheci na vida. Agradeço a Deus tamanha oportunidade. Nosso cotidiano era como sempre alegre e muito divertido.

Meu quarto era cheio de bonecas e bichos de pelúcia o que atraia a vontade das amigas de passar finais de semanas comigo, além de ser um passeio, um dia ou três diferentes. Muitas até foram e nos divertíamos bastante, quando o pai consentia, algo raro, nossa educação era rígida e sem liberdade. Embora minha família fosse um tanto liberal, não existiam tantas proibições, nem vigilância. No terreiro da casa tinha uma grande árvore, na qual, e em um dos seus galhos foi pendurado um balanço, em baixo e ao lado, foi afixada uma gangorra, ali ficava nosso parque de diversão. Brincadeira não faltava. O tempo passou sem que déssemos conta.

As comemorações dos nossos aniversários era para mim um grande e gostoso acontecimento. Os preparativos começavam um mês antes; Rosina Lobo, uma moça velha se mudava de mala e cuia lá pra casa para fazer sequilhos e biscoitos, minha mãe sempre muito habilidosa fazia os bolos, docinhos, salgados e ponches, pois na época não se usava refrigerante nas festas. No dia da festa Dona Sonia Sampaio chegava para confeitar o bolo.

Como morávamos fora da cidade, meu pai mandava um carro apanhar os convidados que já esperavam na Praça da Matriz, nem sei quantas viagens eram necessárias para transportar todos os convidados, sei que eram muitas, e nossos aniversários eram muito divertidos, não me cansava de ver aquele terreiro cheio de crianças, assim como eu correndo, gritando, brincando e sendo feliz.

Essas são algumas das muitas felizes e boas lembranças que guardo da minha infância, daquele tempo e naquele lugar. Arrependo-me de  não ter trazido coisas vividas da minha infância, dos momentos em família e em amigos, enfim da minha vida enquanto criança. “Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!” (Álvaro de Campos).

 

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