Essa semana, devido a crimes cometidos por adolescentes que geraram, por meio de Inteligência Artificial, imagens de suas colegas de classe (de 13 e 14 anos!) nuas, e mais alguns outros ocorridos da mesma natureza que vem se dando com atrizes famosas e outras personalidades, eu e grande parte da sociedade começamos a nos perguntar qual o futuro do uso dessas tecnologias em relação ao uso e manipulação de imagens de anônimos e famosos. Apesar de já se requerer às plataformas digitais em que tais imagens são divulgadas que impeçam, ou ao menos advirtam ao usuário que tal imagem não é real, sua produção, ainda que apenas para a “apreciação” do seu usuário jamais poderá ser impedida.
Enquanto é inegável que cabe ao Estado punir os responsáveis por divulgar tais imagens, principalmente no que se refere a menores de idade, bem como as plataformas em que são divulgadas (que vale lembrar são responsáveis por tal, e capazes de coibir tais práticas), a mente humana ainda que em seu mais profundo rincão, para o bem ou para o mal, jamais poderá ser controlada.
Sinal, menos nefasto, disso, é a abundância de best-sellers que hoje inundam o mercado editorial que são (ou que originalmente foram) fan fictions (histórias criadas por fãs a partir de uma obra original). Exemplo disso é o popularíssimo “Cinquenta Tons De Cinza” que é conhecido por ser uma fanfic (abreviação de fan ficton) da saga “Crepúsculo”.
Casos criminosos da prática que envolvem menores de idade, e como o que recentemente envolveu a atriz Isis Valverde que também teve uma montagem sua gerada por Inteligência Artificial compartilhada na internet, começam a se tornar comuns. Especialistas apontam que isso é apenas o início da prática, que pode ter impactos mais profundos na sociedade a partir do momento que passar a gerar não apenas imagens de anônimos e famosos nus, mas quando passarmos a nos deparar com imagens e vídeos falsos de figuras públicas, principalmente no âmbito das eleições, proferindo discursos falsos ou o que mais for.
No século 21, em vários âmbitos da sociedade teremos que abandonar a velha máxima do ver para crer, já que nem tudo que, de agora em diante, vermos, será, necessariamente, verdade.
Contudo, me afastando do âmbito criminoso dessas questões, uma coisa que constantemente me vem impressionando é como, quase no fim do primeiro quartel do século 21, a nudez (mesmo que fictícia) é algo tão encantador a ponto de muitos se disporem a cometer crimes para criá-la e apreciá-la. Ainda me surpreende que criamos uma sociedade em que o ser humano, em seu estado mais natural, é algo capaz de destruir vidas e fazer as pessoas cometerem crimes.
Nesses momentos, para mim é inevitável lembrar de uma um antigo bafafá do fim do século 19 causado por um retrato pintando por John Singer Sargent, um americano considerado o maior retratista de sua época. O retrato da jovem socialite, Virginie Amélie Avegno Gautreau, esposa do banqueiro francês Pierre Gautreau. “Madame X” foi pintado não como uma encomenda, mas a pedido de Sargent. Mostra uma mulher posando em um vestido de cetim preto com alças adornadas de joias. O retrato é caracterizado pelo contraste entre a pele pálida da modelo e o vestido preto e o fundo escuro.
Contudo, o que parece ao observador moderno um retrato comum, aos olhos dos parisienses do final do século 19 foi um grande escândalo. Tal escândalo provocado no Salão de Paris de 1884 custou a carreira de Sargent na França, contudo depois ajudou-o com sua carreira na Inglaterra e Estados Unidos.
As reações imediatas à pintura foram fortemente negativas. Ralph Wormeley Curtis que também exibia no Salão, escreveu que “Estava uma grande multidão diante dela durante o dia todo”. Enquanto alguns artistas exaltavam o estilo de Sargent, Curtis escreveu que o a reação do público em geral foi majoritariamente negativa: “Todas as mulheres zombavam. ‘Ah voilà la belle!’, ‘Oh, que horreur!’ [Ah, aqui está a bonita! Oh que horror!] etc.”
Logo após a abertura da exibição. Críticas negativas começaram a inundar a mídia e a sociedade parisiense. A primeira, no L’Événement, dizia:
“O Sr. Sargent cometeu um erro se ele acredita que expressou a arrebatadora beleza de sua modelo… Mesmo reconhecendo certas qualidades que tem a pintura, nós estamos chocados pela expressão fraca e pelo caráter vulgar da figura”.
Outras críticas logo seguiram. Muitos focaram na beleza (ou falta dela) da retratada, particularmente em comparação à reputação de Gautreau (cuja identidade foi apenas fracamente protegida pelo anonimato no título da pintura) que possuía uma grande beleza, e frequentemente focada em sua pele, que era descrita como “pálida” e “cadavérica”.
Outros focaram na sexualidade do retrato. Um crítico do L’Artiste escreveu: “de dotas as mulheres desnudas no Salão esse ano, a mais interessante é Madame Gautreau… pela indecência do seu vestido que parece que está prestes a cair”. A exaltada promiscuidade da pintura foi satirizada. La Vie Parisienne publicou uma caricatura de Madame X, retratando Gautreau com seu seio exposto. Na legenda se lia: “Mélie, seu vestido está caindo!” “É de propósito… E me deixe em paz de uma vez por todas”
Algumas críticas acusaram Sargent de tentar criar um escândalo, com um escrito do Art. Amateur chamando Madame X de “um claro exagero de cada uma de suas maléficas excentricidades, simplesmente com o propósito de se falar a respeito e provocando discussões.
Contudo, tanto quanto no que se refere às imagens geradas pela Inteligência artificial de hoje como a pintura dos Salões de outrora, um pequeno número de críticas positivas focou na percepção que um público futuro teria sobre a obra, uma teorizando que “…se é verdade que cada geração refaz à sua imagem a obra da natureza, então os futuros críticos verão aqui nosso cosmopolitismo parisiense manifestado na sua forma ideal”. O que de fato hoje percebemos.
Se o mesmo se dará no futuro com as obras geradas pela Inteligência Artificial, só o futuro dirá. Mas temos que nos preparar, o futuro já chegou.