Não sei se é algo que acontece com todos, mas eu, particularmente, demorei muito a encontrar o meu lugar no mundo. Aliás, até hoje eu não sei muito bem a que vim. Desde muito cedo me faltava o sentimento de pertencimento em diversos “lugares”. Família, escola, amigos… lugares comuns a tantos, para mim eram algo como que estranhos ou não pertencentes a mim.
Com o tempo, construí um lar em que me sentisse realmente acolhido e pertencente. Selecionei os amigos que queria que fizessem parte da minha vida, e faço questão de cultivá-los. Entendi que família mais do que os laços de sangue são aquelas pessoas que cuidam de nós e nos amam. O sangue muitas vezes é irrelevante em nossas vidas, o amor é o verdadeiro laço que nos une.
Com o passar dos anos, e com a compreensão de que meu mundo era muito mais do que aquele microcosmos em que eu vivia, precisei me readequar mais uma vez. Eu não era mais apenas um filho, irmão, sobrinho… eu era herdeiro de uma família muito antiga e que teve sua parte na construção desse estado e desse país. E como todos nós sabemos, isso implica muito sangue derramado, pessoas mortas, expulsas de suas terras e escravizadas.
Sou herdeiro de um lugar social privilegiado e, portanto, de uma dívida histórica gigantesca.
Por muito tempo, ouvi de meus pais as histórias de suas vidas. De como minha família tinha suas raízes fincadas na agricultura, e, ao mesmo tempo de como eles, eram a primeira geração a ter uma educação formal que lhes possibilitou o acesso ao ensino superior. Ambas as minhas avós viram na educação a única forma de seus filhos terem um futuro livre das incertezas e das agruras da vida rural tão sofrida no nordeste do Brasil.
Assim, antes mesmo de conhecer a extensão da dívida histórica atrelada à minha família, cresci sabendo do privilégio que era ter pais educados e ter acesso a uma educação de qualidade. Isso me fez compreender, desde cedo, que tal privilégio não poderia ser desperdiçado.
Muito cedo, decidi que queria seguir uma carreira ousada e totalmente fora dos lugares comuns que eu conhecia. Me dediquei desde muito cedo a fazer o máximo que podia com que estava ao meu alcance. Movido simplesmente pela ideia de que geração a geração fomos crescendo pouco a pouco. Inicialmente pais iletrados fizeram questão que seus filhos recebessem instrução, esses filhos, por sua vez fizeram o possível para que a educação da próxima geração fosse ainda mais ampla e, com isso, maiores fossem suas oportunidades no mundo. Sentia que a minha obrigação era, no mínimo, contribuir com esforço semelhante.
Com o tempo, aprendi que todo esse esforço que meus antepassados dispensaram na criação de seus filhos, não era apenas esforço, mas um privilégio. E um privilégio conseguido através de uma enorme dívida histórica. Sempre soube que “só estudar” era um privilégio, mas nunca soubera o tamanho e as implicações de tal privilégio.
Assim, a escolha daquela carreira não era mais um luxo que eu podia me dar, ou uma obrigação geracional, mas a necessidade de usar o meu lugar de privilégio para tentar, no que fosse possível, começar a reparar tamanha dívida que carrego.
Quando me dei conta disso, muitas novas questões surgiram na minha cabeça. Contudo, decidi que culpa não era o sentimento que eu deveria cultivar. Culpa é um sentimento que apenas nos trás efeitos negativos e nos envolve numa nuvem de inatividade. Ação, sim, era o caminho a ser tomado. Mas que ação?
Brinco, frequentemente, quando alguém diz que não toma café com açúcar, que os europeus atravessaram o Atlântico, invadiram terras, dizimaram povos, escravizaram e passaram séculos povoando o mundo de misérias para que nós pudéssemos ter açúcar, e que não botar açúcar no meu café seria fazer todo esse sofrimento ser em vão. Assim também compreendo a vida como um todo.
Compreender os privilégios que tenho, e a dívida histórica atrelada a tal privilégio, é um grande fardo, contudo, decidir fazer um voto de pobreza e me recolher a um monastério e viver uma vida de penitência, poderia até ser a solução para apaziguar a minha consciência, mas não faria nada de bom para o mundo. A ação, por outro lado, pode ajudar o mundo a ser um lugar melhor para aqueles que foram historicamente explorados.
Mas que ação eu posso tomar para contribuir com esse mundo caótico e desigual no qual eu vivo? Acredito que fazer parte de uma camada da sociedade extremamente privilegiada me dá a oportunidade de viver uma fida fora do comum. “Extra-ordinária”. Ocupar o lugar que ocupo me dá a possibilidade de acesso a inúmeras oportunidades que incontáveis outras pessoas jamais terão nessa vida. E, assim, acredito que tudo começa com o aproveitamento de tais oportunidades. Da mesma forma que brinco que não colocar açúcar no café é um desrespeito ao passado do Brasil, eu, e pessoas que ocupam o mesmo lugar social que eu, não ocuparmos os lugares que podemos ocupar é um desrespeito a tal herança.
Que fique claro que não digo isso como uma forma de perpetuarmos o status quo em que vivemos, pelo contrário. É necessário que aproveitemos as oportunidades que temos de acessar os lugares de poder que são quase um direito inato nosso, para que, a partir dali, possamos contribuir com a mudança tão necessária para esse país e para estrutura social que já se perpetuou por tanto tempo.
Se é quase impossível para as minorias e populações marginalizadas da nossa sociedade acessarem esses lugares de poder, e para nós, ainda que em alguns casos possa ser algo difícil, é uma possibilidade. Que nos aproveitemos de tal possibilidade e sejamos nós o vetor de mudança. Que nos utilizemos desse privilégio que nos abre tantas portas para que possamos abrir essas portas para todos, e não só para os nossos.
Não desperdicemos nossos privilégios, e também não nos acomodemos com eles. Que não sejamos frutos de nossa sociedade, classe, gênero… não sejamos comuns. Precisamos de pessoas extraordinárias para mudar o mundo e fazê-lo dele um lugar melhor.