A palavra ideologia reflete um conceito criado pelo francês Louis Claude Destutt de Tracy (1754-1836) que o empregou pela primeira vez no seu livro “Elementos de ideologia,” escrito em 1801 para fazer, segundo ele, “um estudo cientifico das ideias.”
Por ser polissêmico, ou melhor, por possuir mais de um significado, torna-se dificultosa a real compreensão do sentido do verbete. A rigor, a ideologia é um tema tão antigo quanto a filosofia, que de há muito já povoava o pensamento dos filósofos clássicos como Aristóteles.
Os positivistas, discípulos do filósofo francês Augusto Comte, (1798-1857) defendiam a tese de que a ideologia poderia ser usada para tornar concreto tudo aquilo que era abstrato.
De toda essa polêmica de origem, surgiu uma corrente crítica que teve como marco cronológico o século XIX, propondo uma visão conceitual que perdura até os dias atuais.
Vejamos a apreciação de Karl Marx sobre o tema, ele que escreveu em parceria com Friedrich Engels o clássico “A Ideologia Alemã” em1845/1846:
“O filósofo e sociólogo alemão Karl Marx, considerado o fundador do socialismo científico e criador do método de análise social materialista histórico e dialético, foi quem teceu um olhar crítico sobre a ideologia. A partir da visão crítica de Marx, o termo passou a ser designado como algo negativo. O materialismo histórico marxista não via a possibilidade de separar a produção de ideias da realidade histórica e material, defendendo que as ideias surgem em um determinado contexto e por um determinado motivo.
Marx acreditava que houve a criação de um grande aparato ideológico para fazer parecer que a manutenção e o predomínio dos interesses da burguesia sobre os interesses do proletariado eram legítimo, moral e correto. Com isso, o Estado surgiu como um mecanismo de dominação com o sistema político. A cultura, a religião e a ideologia eram os meios de dominação cultural, que fazia com que o proletariado aceitasse a dominação. (grifo nosso) A ideologia era, portanto, o meio de manter as pessoas calmas por meio de uma ilusão: a de que o capitalismo e a propriedade privada eram meios justos.”(1)
https://brasilescola.uol.com.br/filosofia/ideologia.htm;
Em tempos mais modernosos, o uso da palavra ideologia intensificou-se na medida em que a luta de classes foi se tornando mais nítida, mais evidente, mais intensa e mais renhida. Os arautos da ideologia liberal, têm feito um grande esforço de marketing para fazer valer através dos meios de comunicação, um pacífico aceitamento da hegemonia de classe.
Por conseguinte, o comportamento daqueles que põem a mão na massa e realizam o serviço sujo da exploração de classe de forma terceirizada pela burguesia, só pode ser explicado através de duas hipóteses:
Na primeira hipótese pela ignorância do conteúdo e do sentido da palavra ideologia. É esse obscurantismo que transforma os incautos em meros instrumentos e em caixas de ressonância da classe dominante. Nesse estado de candura, eles podem e devem ser considerados como recuperáveis, merecendo, portanto, a nossa ajuda. À vista disso, torna-se uma obrigação nossa, enquanto classe dominada, a missão de esclarecê-los.
Na segunda hipótese por puro oportunismo, num comportamento comum aos que exercem em sã consciência o deplorável papel de lacaios da classe dominante. Nesse estágio psicológico, estão geralmente afetados pela síndrome da dissonância cognitiva e, com certeza reagirão mal e ficarão incomodados e agressivos com os nossos argumentos. Infelizmente se transformarão em serviçais da classe dominante, sendo necessário identifica-los e abordá-los de forma respeitosa, porem com uma argumentação segura, consistente e enérgica.
Na polêmica que se estabeleceu em torno do conteúdo da primeira prova do ENEM, a palavra ideologia foi usada exaustivamente por parte de uma elite autoritária. Desse modo, fomos obrigados a ouvir as bravatas tanto dos grandes empresários do agronegócio, quanto de parlamentares, como foi o caso do deputado Pedro Lupion do Paraná. Lupion, de uma genética política de extrema direita, é um misto de empresário rural e deputado federal eleito juntamente com seus correligionários, com o apoio financeiro dos grandes produtores rurais. São defensores do projeto ideológico da classe dominante com o compromisso de zelar pelos seus interesses.
No seu mister fazem uso dos meios de comunicação por eles controlados para encenar uma cínica vitimização.
Vejamos:
“A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) divulgou nota nesta segunda-feira (6) na qual pede ao governo federal explicações sobre três questões do primeiro dia de prova do Exame Nacional de Ensino Médio (Enem), aplicada neste domingo (5).
No documento, a FPA pede a anulação das questões 89, 70 e 71 (números de referência da prova branca, pois, na avaliação da entidade, as perguntas ‘são mal formuladas, de comprovação unicamente ideológica’ e permitem “que o aluno marque qualquer resposta, dependendo do seu ponto de vista”(2)
Vejam só o que disse o deputado federal Gustavo Gayer (PL-GO) sobre a prova do ENEM à qual a sua própria filha se submeteu.
Segundo o deputado, a filha, de 17 anos, participou da primeira etapa do Enem no domingo (05/11/2023). No primeiro dia foi aplicada a prova de ciências humanas e linguagens além da redação. Gayer defendeu que:
“uma pessoa que se sai bem nessa abominação [no Enem] já não é mais um indivíduo, é um avatar ideológico”. (grifo nosso) (3)
Cremos uma declaração como essa, vinda de um pai, é mais do que suficiente para desmascarar o corporis spirits do poder econômico. Ele só esqueceu de um pequeno detalhe que foi esclarecer de qual ponto de vista ele estava enxergando a ideologia de que falava.
Esqueceu ele de explicar que a PEC 95 que foi aprovada no congresso e congela o investimento público até 2030, vai ferir de morte os postos de trabalho, gerar desemprego, fome e miséria; isso é ideológico!
Esqueceu de explicar a defesa que o parlamento tem feito da Lei do teto de gastos e da Lei de responsabilidade fiscal, que inibem o investimento e é um anticoncepcional para o emprego e a renda; isso é ideológico!
Esqueceu de justificar a ideia da criação do famigerado orçamento secreto, o qual desvia dinheiro do orçamento destinado ao custeio e investimentos estruturantes, e será desviado para o fisiologismo e o financiamento de campanhas políticas milionárias; isso é ideológico!
A sociedade capitalista considera o estado uma propriedade sua, embora seja numericamente inferior e beneficie apenas entre 20 a 25% da população. Mesmo assim e praticando a ideologia da dominação, ela consegue através da subordinação, oprimir sem resistência entre 75 a 80% da massa operária.
Para fechar com chave de ouro, vejamos a opinião de um mestre das ciências jurídicas, pensador político e professor titular da faculdade de direito do Largo de São Francisco da USP, Alysson Mascaro:
“A sociedade capitalista se reproduz mediante formas sociais que a todos e a tudo determinam: mercadoria, valor, dinheiro, propriedade privada, contrato, Estado, direito etc. Todos os indivíduos e todas as classes se submetem, materialmente, a essa coerção das formas sociais burguesas. O pobre e o rico sabem que sua vida é medida por dinheiro; a diferença é que um tem – e pelo dinheiro explora –, enquanto o outro não tem – e pelo dinheiro é explorado. (grifo nosso) As condições do capitalismo não dependem da vontade de cada indivíduo; são, antes, estruturais. Não se é capitalista ou assalariado porque se quer, mas porque a sociedade assim produz suas relações sociais.
Essa base material pela qual as relações se mantêm faz com que todos, no capitalismo, tenham de viver submetidos às determinações do modo de produção. Mas contra isso, em geral, os indivíduos não se opõem: todo esse processo se faz pela vontade dos submetidos. Todos contratam, compram e vendem, negociam sua força de trabalho, desejam maiores lucros, melhores salários, oportunidades de negócio, segurança ao seu patrimônio etc. A ideologia capitalista é o que forma, na prática constituinte, os sujeitos que vivem em sociedades capitalistas. (grifo nosso)” (4)
O apetite do capital é tão intenso que até empresários toscos e aculturados do agronegócio e da mineração se acham no direito ditar normas para filósofos, professores, pedagogos do ensino brasileiro!
Referências:
Ideologia. Conceituação de ideologia – Brasil Escola (uol.com.br) (1)
Enem 2023: bancada do agro diz que há cunho ideológico em 3 questões e quer convocar ministro | Política | G1 (globo.com); (2)
Deputado diz que vai punir a filha se ela for bem no Enem; vídeo | Metrópoles (metropoles.com)(3)
ALYSSON MASCARO: Sobre os Centros Socialistas – notícias/ publicação – Critica Do Direito;(4)
Fotografias:
Retomada Ideologia e Alienação | Quiz (goconqr.com);
Ideologia Althusser poulantzas | PPT (slideshare.net);
Representatividades Estaduais no Congresso Nacional | Blog Cidadania & Cultura (wordpress.com);
Karl Marx: “As ideias dominantes numa época nunca passaram das ideias da classe dominante” | Super (abril.com.br);
(2) AntifaCast #36 | O que é Ideologia, com Alysson Mascaro – YouTube;