Nos últimos tempos muito se tem comentado sobre a reivindicação recorrente no seio das forças armadas, notadamente do exército brasileiro, que alimenta o desiderato latente de assumir o papel de poder moderador, uma espécie de 4° poder. Mesmo que para tanto tenha de atropelar a Constituição da República.
Talvez essa cobiça seja estimulada pelo simples fato de as forças militares fazerem parte da superestrutura do aparelho de estado capitalista, embora que sejam vinculadas de maneira orgânica ao poder executivo, mesmo que de maneira secundária.
O fato é que, ao longo do tempo os militares de um modo geral sempre se arvoraram do direito de ocupar as funções de um quarto poder que se juntaria aos poderes executivo, legislativo e judiciário. Não obstante ser ele uma invenção da monarquia imperial, que contava com respaldo legal na constituição de 1824, outorgada pelo próprio imperador Dom Pedro I.
Explicando melhor, o chamado quarto poder foi um dispositivo constitucional incorporado à fórceps na primeira constituição brasileira, com o fito de assegurar o poder de mando ao imperador diante dos demais poderes. Eram os chamados freios constitucionais incorporados à constituição outorgada de 1824.
Para uma melhor compreensão desse artificio constitucional, fomos buscar na história, a origem da ideia do chamado poder moderador e encontramos a definição que se segue:
“O Poder Moderador foi um dos poderes que constituíam as instituições do Império Brasileiro (1822 a 1889). Ele coexistia com os poderes legislativo, judiciário e executivo, formando, assim, um quarto poder. O exercício desse poder era conferido apenas ao imperador, que tinha o objetivo de “vigiar a Constituição” e “harmonizar” os outros poderes. (grifo nosso) O Poder Moderador não era considerado um “poder ativo”, isto é, o imperador não agia efetivamente como um juiz, ou como legislador, ou ainda como um ministro de Estado. O Imperador apenas tinha o poder de nomear esses cargos e de supervisioná-los, coordenando-os para que houvesse o equilíbrio institucional no Império. O Poder Moderador foi exercido pelos imperadores do Brasil com o objetivo de harmonizar os outros poderes do império e era garantido pela Constituição de 1824 1.” (1)
Poder Moderador – Brasil Escola (uol.com.br);
Lá pelo início do século XIX, a coroa portuguesa, assediada que vinha sendo por Napoleão Bonaparte, foi obrigada a tornar o Brasil um país independente, mas não sem antes assegurar as devidas garantias de continuidade do poder imperial. A independência do Brasil teve por propósito precaver Portugal da saga do imperador francês, já que o Brasil era a parte rica do império luso brasileiro.
O fato é que todas as negociações aconteceram em família, entre o rei de Portugal e a imperatriz Leopoldina, esposa de Dom Pedro I que se encontrava ausente. Numa longa e penosa viagem à cavalo o imperador havia se deslocado ao estado de São Paulo, em mais uma das suas frequentes ausências.
Em virtude do caráter de urgência a negociação transcorreu em sigilo, e somente foi comunicada a Dom Pedro I através de uma carta entregue por um mensageiro que saiu a sua procura no automóvel da época que era o cavalo. Portanto a cena da proclamação da república levada a efeito por Dom Pedro I nas margens do riacho Ipiranga em São Paulo, ao que parece teve apenas um efeito simbólico.
Diante disso nunca é demais relembrar que a independência do Brasil foi de fato uma ação consentida, acordada entre pai e filho e cercada de todos os cuidados legais, para evitar surpresas e garantir a estabilidade do regime imperial brasileiro sem prejuízo da realeza.
O que então era chamado de Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves passou a ser chamado apenas Império do Brasil, numa transformação em que o povo brasileiro esteve à margem da decisão. A partir daí o Brasil foi transformado numa monarquia constitucional parlamentarista, tendo o Príncipe Regente D. Pedro I, filho do rei de Portugal, como o seu primeiro imperador.
Uma vez proclamada a independência, era necessário um instrumento formal que estabelecesse regras de governança a serem seguidas pelo novo governo. Nesse sentido, em 25 de março de 1824 foi outorgada a primeira constituição, elaborada com o claro propósito de assegurar que a integridade dos interesses do imperador D. Pedro I não seriam contrariados nem limitados pelo Poder Legislativo nascente.
A disputa entre poderes e as concessões do poder executivo têm sido uma prática recorrente. O atual presidente da câmara federal, Artur Lira, tem repetido alto e bom som que se não houver a chamada “reciprocidade” não haverá a necessária governabilidade.
A partir de 1822 as turbulências políticas passaram a fazer parte do nosso cenário político, e nunca faltaram: revoltas, tentativas frustradas de golpes, além de golpes de Estado efetivamente desfechados, num total de nove, desde o ano da proclamação da república em 1822, até os dias atuais. Vez por outra as ameaças de golpe recrudescem.
Cronologia do número de golpes de Estado ocorridos no Brasil desde a proclamação da Independência:
O primeiro golpe de estado aconteceu logo após o início da monarquia republicana, ficou conhecido como a Noite da Agonia e teve como autor o próprio imperador D. Pedro I que para tanto contou com ajuda militar. Foi desfechado contra a Assembleia Constituinte Brasileira eleita em 03 de maio de 1823 para elaborar a primeira constituição do Brasil.
Quantos golpes de Estado houve no Brasil desde a Independência? (uol.com.br);
A partir de então desencadeou-se uma sequência de golpes de estado, os quais começaram com a polêmica em torno da questão da maioridade de D. Pedro II.
Posteriormente ocorreu o golpe militar comandado pelo Marechal Deodoro, que contou com a substancial ajuda de Benjamim Constant, um engenheiro militar positivista e um dos maiores expoentes do republicanismo.
Logo depois o próprio governo golpista de Deodoro da Fonseca, seria golpeado dentro do próprio golpe pelo seu conterrâneo e também general Floriano Peixoto. Em 1930 ocorreu mais um golpe de estado com o nome de Revolução de 1930, fruto da rebelião do movimento tenentista que levou Getúlio Vargas ao poder. Na sequência um golpe dentro do golpe dado pelo próprio Getúlio Vargas com o nome de Estado Novo que perdurou até a sua deposição, através do golpe suave de 1945.
Finalmente, e depois de muitas quarteladas e ameaças, regidas pela chamada banda de música da UDN em que o maestro era o entreguista Carlos Lacerda, ocorreu o golpe militar de 1964 com a orientação da CIA e o apoio dos Estados Unidos da América do Norte-USAN.
O fantasma do comunismo serviu de pretexto para o golpe militar de 1964, e a bem da verdade tinha um ingrediente geopolítico por parte dos USAN com o fito de frear o processo crescente de industrialização e o crescimento do Brasil, e transformá-lo em um porta aviões. Na visão dos USAN não seria permitida a criação de um Japão do hemisfério sul. Era preciso tirar-lhe o pão da boca e além disso se apropriar das suas riquezas, principalmente da energia fóssil do petróleo nacional que fortaleceu a Petrobrás, sendo a causa maior do suicídio de Getúlio Vargas. O ápice cruento de todo longo processo de conspiração redundou no golpe militar de 1° de abril de 1964, e o motivo não seria outro se não “salvar nossa pátria do comunismo!”
O golpe militar de 1964 que está mais presente na nossa memória, durante os seus longos e sombrios 21 anos de duração, e depois de muita truculência, perdeu credibilidade junto à nação e até dos seus próprios apoiadores originais como Teotônio Vilela. Aquela bazófia de caçada aos comunistas, que ainda hoje são moinhos de vento da extrema direita, foi gradualmente perdendo o encanto e a credibilidade. Chegou a um estágio de descrédito e perdeu apoio a ponto de exigir o uso da coerção que desaguou no famigerado AI-5.
Todavia é enganoso imaginar que a ditadura militar caiu de madura. Ela enfrentou desde o princípio a reação das forças populares e progressistas e foi obrigada a aprofundar a repressão no ano de 1968, com a edição do Ato Institucional Número 5, o famigerado AI5 que resultou no fechamento do congresso nacional.
Censura prévia das artes, torturas físicas com requinte de crueldade, prisões indiscriminadas, desaparecimentos de presos políticos, e eliminação física de todos os adversários que ousassem contestar o status quo. Esse era o cenário macabro do golpe militar de 1964.
Segundo os registros históricos:
“O golpe de 1964 foi resultado de uma articulação política golpista realizada por civis e militares na passagem de 1961 para 1962. É importante esclarecer que, apesar dessa conspiração ter efetivamente surgido em 1961, a Quarta República Brasileira foi marcada por diferentes tentativas de subversão da ordem realizadas pela UDN.
O caminho que levou ao golpe de 1964 começou a ser trilhado com a posse de João Goulart (Jango) em 1961. Criaram-se diversos obstáculos à posse de Jango como presidente, que só assumiu porque foi implantado às pressas um sistema parlamentarista que reduzia os poderes do Executivo.
Por causa da estreita relação de Jango com o sindicalismo brasileiro, os grupos conservadores da sociedade viram o político gaúcho com extrema desconfiança e frequentemente o acusavam de ser comunista pelos conservadores. A crise política do governo de Jango fortaleceu-se também por causa de reformas que foram defendidas pelo governo – as Reformas de Base.” (3)
https://brasilescola.uol.com.br/historiab/golpe-militar.htm;
Já enfraquecida e exangue, a ditadura militar percebeu o seu esvaziamento e o seu fim, quando as ruas deste pais foram tomadas por multidões apoteóticas exigindo eleições diretas com a palavra de ordem Diretas Já. Foi nesse ponto que em articulação com as forças políticas mais conservadoras, encontraram uma saída honrosa através de uma transição negociada e conveniente, de modo a preservar os torturadores. Para evitar a devassa da tirania e a punição dos verdadeiros culpados, o governo militar propôs e foi aceita uma anistia ampla geral e irrestrita para apagar principalmente todos os rastros dos crimes dos torturadores.
A rigor esse foi um benefício unilateral totalmente favorável aos torturadores, haja vista que os oprimidos já haviam pago um preço muito alto com lesões corporais irreversíveis e até mesmo com a própria vida. Em que pese passarem por todo esse opróbio e mesmo sofrendo na pele as marcas da tortura, ainda hoje são considerados para a extrema direita, como os culpados por tudo.
Resultado: Isentos de culpabilidade, os militares que desde a proclamação da república entenderam de ocupar o espaço vazio deixado pelo chamado poder moderador, vez por outra querem utilizá-lo através de um tal decreto de Garantia da Lei e da Ordem-GLO.
A Constituição Federal de 1988 no seu artigo 142 define:
“Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
- 1º Lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas;
DECRETO Nº 3.897, DE 24 DE AGOSTO 2001.
Fixa diretrizes para o emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, (GLO-grifo nosso) e dá outras providencias:
Art. 2º É de competência exclusiva do Presidente da República a decisão de emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem.” (4)
Foi invocando inadequadamente tudo quanto eles acham que é Lei, que os golpistas civis e militares estimulados e financiados pela extrema direita, desenharam uma estratégia para o fracassado golpe de 08 de janeiro de 2023 baseado na seguinte sequência cronológica:
1- Bolsonaro durante o decorrer de todo o seu mandato, questionaria e colocaria sob suspeita, o modelo eleitoral vigente, ao qual se submeteu e com o qual foi eleito em 2018;
2- Passadas as eleições, tanto no primeiro como no segundo turno, já prestes da diplomação e posse do presidente Lula, Bolsonaro abandonou o governo, e sem licença da câmara 30/12/2022 viajou com destino ao estado da Flórida nos USAN, deixando o país acéfalo;
3- Tanto a diplomação do candidato eleito quanto a sua posse transcorreu sob um clima de grande tensão em que parte das forças militares com apoio civil iniciaram a escalada do golpe de 08 de janeiro e como estratégia escolheram um dia de domingo provavelmente para tirar partido do fator surpresa;
4- No dia aprazado para a auto denominada “Festa de Luiza” houve a invasão da sede dos três poderes quando o presidente Lula se encontrava numa atividade de governo em Ribeirão Preto SP;
5- Foi nesse ínterim que surgiu uma proposta oportunista estimulando a decretação por parte do presidente Lula de um Decreto de Garantia da Lei e da Ordem-GLO, embasado no Decreto 3.897. A experiência política de Lula não permitiu que ele caísse nesse conto do vigário, fornecendo a corda com a qual iriam enforca-lo;
6- Pelo raciocínio dos golpistas já que as eleições para eles seriam anuladas, a presidência da república seria declarada vaga. As Forças Armadas exerceriam o papel de “Poder Moderador” e o golpe seria coroado de êxito, para ser catalogado como o 10° golpe de estado da nossa história.
Esse devaneio que alimenta a ideia de transformar o Exército poder moderador precisa ter um paradeiro, para não perdurar para o todo e sempre perturbando a vida democrática do país. Portanto é pertinente a aplicação dos rigores da lei aos envolvidos na tentativa fracassada de golpe de estado em 08 de janeiro, sejam eles civis ou militares.
É sempre oportuno lembrar que a anistia ampla geral e irrestrita de 1985 isentou criminosos travestidos de militares e a impunidade tem incentivado à recorrência de tentativas costumeiras de golpes de estado, sempre ao arrepio da lei e em desrespeito ao chamado estado democrático de direito, com a velha, rota e surrada desculpa de “livrar o país do comunismo.”
Chega, golpe nunca mais!
Referências:
Poder Moderador – Brasil Escola (uol.com.br) (1)
Constituição de 1824: contexto e determinações – Brasil Escola (uol.com.br);
https://brasilescola.uol.com.br/historiab/golpe-militar.htm; (3)
O papel de Benjamin Constant na formação da republica – Pesquisa Google;
Constituição (planalto.gov.br); (4)
Fotografias:
História & Educação: Independência do Brasil (profellingtonalexandre.blogspot.com);
o grito do Ipiranga Pedro Américo – Pesquisar Imagens (bing.com);
Noite da agonia: Há 199 anos, anos Dom Pedro ordenava invasão ao Plenário (uol.com.br);
revolução de 1930 – Pesquisa Google;
31 de março de 1964: o que os militares fizeram foi golpe ou revolução? (gazetadopovo.com.br);
Brasil República: Decretação do AI-5 – StudHistória (studhistoria.com.br);
Memorial da Democracia – Governo sanciona lei que cria a Petrobrás