Aprendemos ainda na infância que, desde os tempos imemoriais a lei natural define o curso da vida de todos os seres vivos dividindo-a em fases. Assim sendo e naturalmente, eles nascem, crescem, se reproduzem e morrem.
Confessamos que estava, e como nordestino ainda hoje estamos muito preocupado e triste, assistindo intrigado a investida anual mercadológica, que vem provocando a morte lenta da nossa cultura popular. O pior é que a investida conta com a cumplicidade de muitos gestores públicos nordestinos. Nos confessamos espantado, com a velocidade do processo de invasão indiscriminada de um bioma cultural rico como o nosso, formado por tudo quanto há de mais puro, de mais autêntico e mais belo da nossa cultura popular.
Foi com o pensamento fixo nessa realidade avassaladora, e à procura de uma solução salvadora, que começamos a assistir meio indiferente e pensativo, ao programa Globo Rural do dia 26 do mês de São João. No decorrer do referido programa, fomos surpreendidos com um exemplo bem pedagógico da falência cultural iminente de um instrumento musical que melhor representa e anima os nossos folguedos juninos ou seja, a secular sanfoninha de oito baixos ou fole de oito baixos como queiram.
A matéria foi exibida já no final do programa citado, e versava sobre a música e a cultura junina, enaltecendo o papel do nordeste brasileiro como uma matriz cultural de grande envergadura no contexto cultural do Brasil. Sob forma de vaticínio e advertência, foi ressaltada a importância de um pequenino instrumento de sopro, bastante conhecido pelos amantes da música nordestina de raiz. O instrumento de que lhes falamos, não é outro senão uma pequena sanfoninha, o nosso o velho e conhecido fole de oito baixos que o sertanejo chama carinhosamente de pé de bode, e o gaúcho denomina de gaita de ponto.
Durante a reportagem foram entrevistados alguns expoentes da arte do fole, entre tocadores e/ou afinadores. Distinguimos entre eles a figura simples e muito modesta de um afinador/tocador de foles de oito baixos de nome seu Artur, lá da cidade de Salgueiro no sertão de Pernambuco.
Seu Artur nos apresentou a forma de refazer a afinação do fole, que vem afinado de fábrica, substituindo-a por uma afinação padronizada. Ao afinador compete substituir a afinação de fábrica por uma outra, chamada afinação transportada, com o objetivo de conferir-lhe uma sonoridade própria carregada de nordestinidade. Portanto é importante saber que a nova afinação da sanfona de oito baixos é sui generis e difere da sonoridade da conhecida sanfona de 120 baixos.
Sem embargo, as queixas generalizadas dos entrevistados têm como foco o fato de não conseguirem enxergar na juventude presente, um interesse maior pela arte musical. Todavia para o alento de todos nós, resta um fio de esperança numa promissora resistência nascente. Ela brota da ação de jovens como Ivson Silva e um outro jovem que faz o curso de graduação em matemática na UEPB, ambos ainda alunos mas também professores de música para a criançada nas suas cidades de origem.
Contudo a surpresa maior e que muito nos alentou, foi tomar conhecimento da atitude proativa de um dos filhos de João de Deus Calixto, conhecido pela alcunha de Seu DiDeus de Campina Grande. Seu DiDeus constituiu uma numerosa família em que pontificaram quatro filhos, todos eles tocadores de fole de oito baixo como: Zé Calixto, Bastinho Calixto, João Calixto e Luizinho Calixto.
Em seguida reproduziremos algumas informações técnicas sobre o fole de oito baixos, necessárias para uma melhor compreensão do famoso instrumento, que difere da sanfona tradicional por três motivos básicos.
. Primeiro: a primeira e visível diferença é o porte físico entre ambos, perceptível até pelo tamanho de cada um dos instrumentos citados. A sanfona tradicional tem 24 teclas brancas e 17 pretas destinadas ao solo da melodia de um lado do instrumento, além dos 120 baixos no outro lado, “tudo preto e impariado” como cantava Gonzaga, destinados ao acompanhamento da melodia.
Enquanto isso, a sanfoninha de oito baixos ou fole de oito baixos como queiram, tem de um lado 21 teclas destinadas ao solo da melodia, e do outro lado, 08 baixos usados para o seu acompanhamento. É um trabalho de duas mãos a desafiar o tocador.
É muito importante lembrar que o tocador de qualquer uma das sanfonas, seja ele de 120 ou de 08 baixos, deverá ter uma boa coordenação motora, além de um raciocínio rápido para mover a sanfona de forma harmoniosa e cadenciada, fazendo uso das duas mãos.
. Segundo: outra diferença fundamental entre as duas sanfonas é a sonoridade. Pois enquanto a sanfona tradicional tem um único tom, tanto na abertura como no fechamento do fole, o pé de bode tem dois tons, um na abertura do fole e o outro no fechamento.
. Terceiro: pelas dificuldades citadas, podemos dizer que é muito mais fácil tocar a sanfona de 120 baixos do que o fole de oito baixos. A dualidade de tons do fole exigirá do sanfoneiro muito mais rapidez, cadência, raciocínio e boa locomoção motora.
Essa dificuldade talvez seja a causa maior do desalento por parte dos jovens aprendizes. Sabemos muito bem do imediatismo que caracteriza grande parte dos jovens, além da sua falta de paciência para com o aprendizado das coisas e a música não é exceção, como aconteceu conosco na adolescência.
Tínhamos em casa um maestro renomado que era o nosso cunhado-padrasto Zuza Vasques, que teve a ideia de nos iniciar na música. Evoluímos rápido e conseguimos chegar à parte de solfejo vocal, mas sem paciência não chegamos a fazê-lo com o instrumento.
Ainda durante o programa de domingo, fomos às raízes da história da música e nos deparamos com o histórico de alguns instrumentos já abandonados ao longo do tempo, tanto pelo surgimento de instrumentos mais modernos, como pela dificuldade no aprendizado, causa maior do desalento.
Em todos os entrevistados identificamos a apreensão e o medo de ver a sanfona de oito bastos ter o mesmo destino de tantos outros instrumentos antigos já em desuso e hoje em dia peças de museus.
Dos instrumentos mais antigos da humanidade como a flauta, o apito, a harpa, o tambor, o arco, a lira, o alaúde, o cravo etc, aqueles que não foram adaptados como aconteceu com a flauta, hoje em dia estão em desuso ou muito pouco usados, a não ser em orquestras.
Em socorro ao fole de oito baixos, Campina Grande que é um dos celeiros musicais do nordeste brasileiro, se valendo da sua capacidade de inventiva e de adaptação tomou uma atitude histórica.
Através da Universidade Estadual da Paraíba-UEPB, nascida do seu ventre fecundo de mãe dadivosa, foi buscar como parceiro nessa cruzada de salvação do fole de oito baixos, ninguém menos do que o filho mais novo de Seu DiDeus que é Luizinho Calixto. Contratou-o como professor e instalou um curso para sanfoneiros de oito baixos coordenado e ministrado por ele, entregando-lhe nas mãos a bandeira da resistência.
Luizinho Calixto desenvolveu um método inovador destinado aos alunos e estudiosos do qual não encontramos imagens, mas foi exibido por ele no Globo Rural do dia 25/06/2023. Pelo visto os primeiros frutos começaram a aparecer para a alegria de quantos cultuam a nossa cultura.
O fole de oito baixo poderá até se adaptar, mas nunca desaparecer. A força de resistência dos amantes da nossa cultura popular irá impedir a morte do instrumento que consagrou nomes como: o velho Januário, Da Hora, Manoel Germano, Geraldo Correia, Pai do Mato, Pedro do Beiço Lascado, Abdias, Zé Calixto, Renato Borguetti, Luizinho Calixto entre outros
Referências:
Repórter Junino – A Notícia no Ritmo do São João – De uma família com forte referência na música nordestina, o fole de oito baixos é seu grande parceiro. (reporterjunino.com.br);
Universidade Estadual parabeniza o professor e mestre sanfoneiro Luizinho Calixto pelo seu aniversário (uepb.edu.br);
Fotografias:
Acordeon 120 Baixos – Scandalli Professional 15 Oitavada – Italy – ACORDEONMANIA;
Acordeon 8 Baixos 21 Botões Musicamento Italiano 8/21 Bamboo em Promoção na Americanas;
Globo Rural;
sanfona de 8 baixos: Fole de Oito Baixos;
Os instrumentos mais antigos do mundo – Bing