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Tradições

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Acho muito curioso como nos apegamos a tradições que nem mesmo nos damos conta de que existem. Da gaveta de panos de prato, a forma de cortar o cuscuz, os lugares à mesa…São coisas que já pegamos “com o bonde andando” e tomamos como naturais até que uma visita senta no lugar errado e nos damos conta que, sim, cada um tem um lugar à mesa.

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E não diferente disso são as tradições culturais que, para nós, são inerentes às festividades, comemorações e solenidades. As tradições, contudo, surgiram em algum momento. As tradições que embasam costumes imemoriais, foram, em sua origem, novidades.

Hoje minha mãe me enviou uma entrevista com diversas pessoas que falavam a respeito de Luiz Gonzaga, que além de Rei do Baião, é a voz do nordestino há quase um século.

Contudo, antes de começar a cantar seus baiões, Luís Gonzaga tocava em seu acordeão suas valsas vienenses, tangos argentinos e fados portugueses. Isso até que em sua busca pelo sustento através da arte, um grupo de cearenses, como conta o próprio Luís Gonzaga, o censurou por tocar as músicas estrangeiras ao invés de cantar as músicas de sua terra e de seu povo.

Assim, ao abandonar as tradições classicistas dos anos 1940, com ajuda do compositor Humberto Teixeira, surgiu o ritmo que seria voz de um povo. Um povo acostumado à diáspora e ao êxito desde que surgiram os primeiros veios de ouro no sertão de Minas Gerais. Luís Gonzaga não foi pai, mas foi quem “criou” o baião, o jogo de foles e que transformou os acordeões europeus na nossa tão familiar sanfona. O seu famoso “fole”.

Ainda hoje, muitos de meus contemporâneos se veem na necessidade de emigrar para o “sul” como fizeram tantos antes de nós. Hoje não mais por causa da seca que impossibilita a subsistência através da agricultura, mas a “seca” de trabalhos, salários e carreiras que nos força a deixarmos nossa terra, nosso “lugar”, para tentarmos a vida em outros lugares.

Diz-se que a canção “Asa Branca” se tornou o hino do Nordeste, e eu posso afirmar que concordo plenamente com a declaração. Seja você trabalhador da construção civil, garçom, porteiro, engenheiro, publicitário, médico ou o que quer que seja. Se em um momento de sua vida você se viu forçado a deixar a sua terra, o seu povo, o seu sotaque, para que pudesse ter trabalho, não há como não se sentir tocado quando a voz rouca de Luiz Gonzaga entoa “Quando olhei a terra ardendo, com a fogueira de São João, eu perguntei a Deus do céu por que tamanha judiação”.

A “judiação” continua. Somos uma região empobrecida, negligenciada e sofrida. Nos fizeram assim. Não somos pobres ou menores que quem quer seja, mas sabemos da “judiação” em que vivemos.

Mas meu ponto não é esse. Falar tudo isso é atestar o óbvio. Eu, contudo, gostaria de fazer as vezes de advogado do diabo numa discussão que vem se rodopiando nas rodas de conversas físicas e virtuais. A questão da tradição nos festejos joaninos.

Eu fui um dos que se sentiu pessoalmente ofendido quando um jornal se referiu a Flávio José, um dos maiores expoentes contemporâneos do nosso forró, como mero “sanfoneiro”, que reclamara da redução de seu tempo de palco no São João de Campina Grande em detrimento de um desses sertanejos genéricos de barba tingida de carvão e calças justas demais.

Infelizmente sou um daqueles jovens antiquados que mal consomem qualquer coisa produzida desde a invenção da penicilina, então aqui falo como mero observador dos movimentos correntes a que sou totalmente alheio. Mas em se tratando de arte o princípio é o mesmo e aplicável a todas as esferas e tempos. Arte é comunicação, é sentimento.

Ainda que ouvir certos acordes faça meu estômago embrulhar, devo aceitar que os mesmos acordes fazem corações acelerarem e lágrimas emoção correrem. Não é porque não gosto, que não é bom, e não é porque é novo ou diferente que é ruim.

Já há algum tempo vem se discutindo na Paraíba a diferença do “forró de verdade” do “forró de plástico”, que seriam as versões “universitárias” com mais instrumentos eletrônicos e toda uma nova roupagem importada, pasmem, da Eslovênia, pequeno país do Leste Europeu onde surgiu o costume de se ressignificar os ritmos tradicionais e dá-lhes uma roupagem contemporânea com mais apelo às novas gerações.

E nessas ocasiões eu gosto de lembrar que as músicas e bandas que eram consideradas de má qualidade não muito tempo atrás, hoje são tidas como clássicas de seus nichos.

Poderia encerrar esse artigo dizendo duas grandes verdades “o novo sempre vem” e “não é porque você não gosta que tal coisa não é boa”, ainda mais se tratando de arte. Mas acho que tal comentário ficaria aquém das minhas possibilidades.

Mudando um pouco o foco de arte para política, eu tive o (des)prazer de nos últimos dez anos ver desde a primavera árabe que se iniciou com protestos organizados via Facebook, presenciei e vivi os protestos de 2013, inclusive escrevendo um artigo científico sobre os então famosíssimos “Black blocks”, vi todo o processo de impeachment de Dilma Rousseff e toda a derrocada democrática e crescimento de posições reacionárias e conservadoras que culminaram na eleição de Jair Bolsonaro e todas as macabras consequências de seu governo. Nesse meio tempo ainda tive tempo de estudar a filósofa alemã Hannah Arendt, que falou amplamente sobre os regimes totalitários que governaram a Europa no século 20.

Assim, toda vez que vejo alguém dizendo que tal ou qual expressão artística não é boa ou digna de atenção me vem aos ouvidos os ecos das exposições de “arte degenerada” no governo Nazista. Bem como todo o pensamento por trás dos movimentos fascistas do século 20 que propagavam uma ideia de nacionalismo baseada na ideia, diga-se de passagem infundada, de uma homogeneidade de um povo e de uma cultura. E que ignoravam totalmente o fato de que cultua, tradições, arte e costumes não são algo inerente ao sangue ou à terra, mas sim construções sociais e resultados de complexos movimentos históricos.

Então para encerrar a conversa enquanto ainda queimam as brasas da fogueira, eu advirto o leitor: por mais que gostemos, valorizemos e tenhamos inúmera memórias felizes junto aos nossos embaladas pelas melodias de um trio pé de serra, o novo sempre vem. A mudança é a única constante na vida e a única forma de as tradições, ainda que renovadas, sobreviverem e persistirem. Nem toda tradição deve ser mantida, da mesma forma que nem toda novidade deve ser repelida. Por mais que isso nos custe a aceitar, a tradição de hoje já foi a novidade rejeitada de outrora.

Não celebramos o Natal como celebrara Francisco de Assis no século 13, não pulamos carnaval como fazia-se em 1910, e por mais carinho que tenhamos pelo São João, por nossa cultura, nossa gente, devemos sempre lembrar que tradições mudam, costumes novos surgem, novas gerações têm novos gostos (que podem, e frequentemente vivem, em harmonia com nossos antigos costumes), e é a mudança, o movimento para frente, que nos impede de virarmos letras mortas num folhetim cheirando a naftalina.

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