Outro dia assistia a um desses recortes que rondam pela internet em que a cantora Maria Rita, filha de Elis Regina comentava não ter memórias de sua mãe que faleceu quando ainda era muito jovem. Também dizia que volta e meia alguém que conhecera sua mãe se espanta com a semelhança que as duas possuem. Que vão de traços físicos a alguns gestos e maneirismos. Ao que a cantora atribuiu a uma espécie de “memória genética”.
Achei poético o termo, ainda mais vindo de uma pessoa filha da voz que eternizou uma música como “Nossos Pais”. Acredito que a questão filial seja algo um pouco recorrente em minha vida, dado ainda mais o meu contexto familiar. Filhos que moram com pais por muito tempo; ainda, eu e minhas irmãs, por exemplo, nunca tivemos “avós”. Tivemos um compilado de papai e mamãe, posteriormente evoluindo a um prosaico “meu pai” ou “minha mãe”, que são meus pais; pai e mãe, que eram meus avós maternos; e painho e mainha, que eram meus avós paternos. Uma salada capaz de enlouquecer qualquer pessoa de fora do clã.
Outro dia folheando antigos álbuns de fotos, nos deparamos com crianças que desde muito cedo já demonstravam suas feições, outras que mudaram completamente, e, ainda, um córrego de feições e marcas que vão correndo pelas gerações. Mais cedo conversávamos sobre a questão de adoção de crianças mais velhas, pré-adolescentes, o que volta e meia nos faz entrar em uma discussão que acredito não ser muito diferente da que ocorrem em círculos científicos.
Discutíamos, no frigir dos ovos, se são nossas características genéticas as responsáveis pelo nosso ser, se é a nossa criação, e, no caso dessa última, em que ponto precisamos nos “apossar” de uma criança para que ela possa ser verdadeiramente nossa.
Acredito que jamais o ser humano, pela sua condição completamente única e individual, chegará a responder essa questão. Nós somos, sim, em parte, um aglomerado de carimbos genéticos, mas também somos muito mais que isso.
Somos nossa criação, mas como minha mãe gosta sempre de dizer: “filhos são como os dedos de uma mão, que saem do mesmo lugar, mas que são completamente diferentes um dos outros”. E em quantos conjuntos de irmãos não podemos observar isso? Filhos dos mesmos pais, criados da mesma forma, na mesma casa e completamente diferentes uns dos outros.
Nessa questão, acredito que mais do que a discussão entre genética e criação, vem algo mais pessoal e individual. É como dizem, “a mesma água quente que amolece uma batata endurece um ovo”. Existe algo tão humano, tão particular em nós, que apesar das questões genéticas e sociais serem invariavelmente influenciadoras em nosso ser, nós somos muito mais do que é feito conosco. Somos mais até mesmo do que fazemos com nós mesmos.
Quantos de nós não passa uma existência sem entender os eventos que circundam nossa existência, sem entendermos por que nós passamos por tais e quais problemas ou por que tal ou qual graça nunca nos foi concedida? A vida, talvez, seja complexa demais para entendermos, talvez haja algo que não sabemos e precise nos ser ensinado.
Na minha eterna lista de referências botânicas, sempre me pego pensando que a vida, mais do que a “colheita” proverbial de nossos atos, depende de como plantamos tais atitudes. Na semeadura de vegetais, como eu acredito que na vida, mais do que um simples plantar e colher, existe um “o que plantar”, outro “como plantar”, mais um “quando plantar”.
Certas plantas precisam ter suas sementes “despertas” simulando processos naturais que encontrariam em seus habitats. Corredeiras que fariam com que, ao se chocar com rochas, a casca da semente se torne permeável e sujeita à brotação, ou mesmo o trato digestivo de um elefante e o montículo de adubo produzido pelo paquiderme ao ser depositado no chão da savana.
Algumas sementes precisam de água ou até mesmo fogo para “despertarem”. Outras precisam germinar num pesado lodo ou em uma areia soltinha. As possibilidades e requisitos do reino plantae são tão infinitos quantos seus componentes. E acredito que não seja diferente do que acontece com nós humanos. A semeadura é essencial, e da boa semente brota a boa planta. Mas se a semente nasce em meio a um campo fértil, por entre as pedras ou, ainda, à sombra de outra árvore, idênticas cargas genéticas se comportam e se desenvolvem das mais diferentes formas.
Acredito que a vida, em sua eterna busca de nos fazer compreender o equilíbrio entre as coisas, nos faz ver como tudo é, minimamente, dual, quando não infinitamente mais complexo que isso. Para certas coisas não existe uma resposta certa, há, quando muito, uma decisão a ser tomada em uma questão em particular.
Ainda revirando o antigo baú de fotos, nos deparamos com partes de nós que nos pegam desprevenidos. São boas lembranças que, em uma simples fotografia descolorida, nos levam numa nuvem de bons sentimentos, da mesma forma outras fotografias nos lembravam de bons momentos se transformam em cinzas em nossas bocas. Mas apesar de tudo que foi ali registrado ter existido, bom ou ruim, no final do dia são postos de volta na caixa, e voltam para o mesmo armário. Talvez quando as vejamos novamente nossos sentimentos tenham mudado, mas nada poderá desfazer o que foi feito e vivido. O que nos pertence é o que é feito depois de fechado o baú.