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O Bacharel Feroz

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Em dezembro de 1950, o escritor Graciliano Ramos publicou na seção dominical “Letras e Artes” do “Diário Carioca” um artigo no qual relatava episódio acontecido, em 1936, na Casa de Detenção do Rio de Janeiro, onde, na época, ele se encontrava preso como comunista pelo governo de Getúlio Vargas, texto que seria incluído na sua obra póstuma “Memórias do Cárcere”:

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Vários hóspedes iam chegando. Um me impressionou, alto, magro, ligeiramente curvo, grave de mais. Avistei-o no fim da plataforma, ao pé da cortina. Ofereceram-lhe uma salva de palmas. Agradeceu com um gesto, apresentou-se:
– Lourenço Moreira Lima […]
Nascera decerto para usar farda. Rijo, anguloso, afirmativo, grande energia exposta na cara onde se cavaram rugas duras, infundia respeito. Apelidaram-no, em consequência, Bacharel Feroz. Injustiça: era simples e bom, um dos sujeitos mais dignos que já vi”.

Como Graciliano Ramos, ao que se sabe, não era dado a elogios fáceis, de imediato surge a indagação: quem era esse Bacharel Feroz, “simples e bom, um dos sujeitos mais dignos que já vi”, a merecer tamanha exaltação do grande escritor alagoano?

Lourenço Moreira Lima, o Bacharel Feroz, nasceu, em setembro de 1881, na cidade pernambucana de Itambé, contígua a Pedras de Fogo, na Paraíba.

Municípios limítrofes, que se confundem e se entrelaçam, tanto territorialmente como nas suas próprias denominações (Itambé = Pedras de Fogo). Por circunstância fortuita, Lourenço nasceu em Pernambuco e foi o único dos nove filhos dos seus pais que não era natural da Paraíba. Os pernambucanos nunca reivindicaram ter Moreira Lima como conterrâneo e os paraibanos sempre o ignoraram, desconsiderando o fato de que ele apenas nasceu em Pernambuco, mas foi na Paraíba que viveu durante as duas primeiras décadas da sua vida, os anos da sua formação. Lourenço Moreira Lima, em um valioso livro que escreveu, não fez qualquer menção especial a Pernambuco, ao contrário de várias manifestações de apreço à Paraíba que aparecem na sua obra quando ele evoca seus antecedentes paraibanos e aspectos da sua vida no Estado.

Moreira Lima descendia de famílias de troncos paraibanos e ligadas à carreira militar. O seu avô paterno lutou na Bahia nas guerras da Independência e, depois, comandou, por vários anos, a força policial da Província da Paraíba. A família da mãe de Lourenço também tinha militares que alcançaram destaque, o coronel José Thomaz Henrique, o seu bisavô materno, estivera, no Maranhão, sob o comando do então general Caxias, na repressão à Revolta da Balaiada. Apesar da tradição familiar militar, Joaquim Moreira Lima, pai de Lourenço, optou pela área jurídica, tendo concluído o curso de Direito em 1863, na Academia do Recife.

Joaquim Moreira Lima iniciou a sua carreira jurídica na capital da Paraíba como promotor público, ao tempo que atuava na imprensa local como redator e diretor de jornais. Ingressou no Partido Conservador, que era presidido na Paraíba pelo Barão de Abiaí, a quem se ligou politicamente e por laços familiares, pois casou com uma cunhada e prima do Barão. Exerceu o cargo de diretor da Instrução Pública da Província (o que equivaleria à atual Secretaria da Educação) e se elegeu deputado provincial. Ao ser nomeado juiz, passou a se dedicar inteiramente à magistratura em várias comarcas, uma delas Pilar, que ficava próxima à Itambé, onde Lourenço nasceu. Em 1893 foi designado desembargador do então chamado Superior Tribunal de Justiça da Paraíba e, por ser o mais antigo dos membros do Tribunal, foi escolhido para presidi-lo.

A infância de Lourenço Moreira Lima se deu em localidades onde o seu pai exerceu a magistratura, a exemplo de Campina Grande, onde estudou em um famoso educandário da cidade, a escola do professor Clementino Procópio, da qual deixou depoimento, no livro que escreveu, sobre como funcionava um estabelecimento de ensino na época, em um relato de um episódio em que, ainda criança, já demonstrava a sua insubmissão com relação a injustiças:

Fotos escola:http://cgretalhos.blogspot.com/2015/01/ontemhoje-grupo-escolar-clementino.html#.ZEHWofzMLr- Clementino Procópio /Divulgação

“Frequentava a escola do sr. Clementino Procópio, na cidade de Campina Grande, na Paraíba, em1890. Havia nessa época o sistema de argumentos a bolo, entre os alunos. Num desses argumentos, o decurião da classe disse que eu errara a resposta de uma pergunta que me fizera e mandou que um colega, a quem repetira a mesma pergunta, me desse um bolo. Protestei não ter errado e recusei sujeitar-me ao castigo. Fui levado à presença do professor Clementino e este, sem atender ao meu protesto, quis castigar-me. E quando ele tentou abrir-me a mão à força, dei-lhe uma dentada…”.

Na sua obra, Lourenço Moreira Lima também recordava, no seu tempo de infância, as temporadas que passava na capital da Paraíba na propriedade do seu avô, “o major Moreira, cuja juventude transcorrera em meio dos combates, envelheceu e morreu amanhando as terras ubérrimas do seu “Sítio do Paul”, povoadas de vastos canaviais e de belas laranjeiras floridas”. A área do antigo Engenho Paul, que localizava-se na capital da Paraíba e que foi propriedade da família Moreira Lima, é atualmente ocupada pelo Centro Cultural Piollin, na vizinhança do Parque Arruda Câmara (Bica).

Concluído o antigo curso primário, Lourenço Moreira Lima ingressou no Liceu da capital da Paraíba, tempo que ele rememorou na sua obra através de relatos de encontros com antigos colegas que residiam fora da Paraíba. O jornalista Edmar Morel, que escreveu uma biografia de Moreira Lima, “A Marcha da Liberdade” (obra descuidada e cheia de incorreções), e que entrevistou seus familiares registrou que Lourenço teve na Paraíba o seu grande amor “a prima Rita Ricardina Carneiro da Cunha, filha de Silvino Carneiro da Cunha, agraciado com o título de Barão de Abiaí. Era tratada carinhosamente de Cotinha e o namorado lhe dedicou sonetos e versos”. Rita Ricardina era irmã da renomada educadora paraibana Olivina Olívia Carneiro da Cunha e permaneceu solteira até o final da sua vida.

Os irmãos de Lourenço Moreira Lima se dividiram entre a carreira judiciária e a militar. Dois deles ingressaram no Exército, Silvino e Felipe. Nascido em Cruz do Espírito Santo, Felipe Moreira Lima foi o que teve maior destaque nas armas, mas, mesmo assim, faz parte da galeria dos paraibanos esquecidos. Felipe participou de praticamente todas as revoltas do movimento tenentista, tendo sofrido várias prisões. Em 1934, foi designado Interventor Federal no Ceará e, quando da chamada Intentona Comunista, foi preso e perdeu a patente militar, vindo a readquiri-la, anos depois, sendo reintegrado ao Exército como general. Na redemocratização do país, em 1946, Felipe foi um dos fundadores do Partido Socialista Brasileiro – PSB. É o pai do brigadeiro Otávio Moreira Lima ex-ministro da Aeronáutica.

Joaquim Moreira Lima, o irmão mais velho de Lourenço, casado com uma irmã do escritor José Lins do Rêgo, foi juiz em várias comarcas da Paraíba. Arthur Moreira Lima, outro irmão de Lourenço, após os estudos no Liceu Paraibano mudou-se para ao Rio de Janeiro, onde se bacharelou em Direito e atuou como servidor do Ministério da Justiça por quase quarenta anos. Manteve, durante algum tempo, vínculos com a Paraíba, chegando a publicar artigos sobre Euclides da Cunha e o dramaturgo norueguês Henrik Ibsen, no jornal local O Norte, dirigido então por Oscar Soares, de quem era amigo. Arthur é o pai do renomado pianista brasileiro Arthur Moreira Lima Junior.

Lourenço Moreira Lima tentou a carreira militar, ingressando, em 1900, na Escola do Realengo, no Rio de Janeiro. Mas, durou pouco tempo a sua experiência no Exército. Seis meses depois do seu ingresso na Escola Militar, Moreira Lima foi desligado, juntamente com outros alunos, por insubordinação contra um oficial.

Findava aí sua vida castrense. Ele continuou morando no Rio de Janeiro, onde já residiam três dos seus irmãos, trabalhando como auxiliar de escrita da Estrada de Ferro Central do Brasil e como guarda da Alfândega e, em1905, foi nomeado auxiliar da estação meteorológica marítima de Fortaleza, no Ceará, o que fez com que ele deixasse o Rio.

Em Fortaleza, Lourenço Moreira Lima iniciou o curso de Direito, tendo exercido importante liderança como representante dos estudantes, chegando a ocupar a vice-presidência do Centro Acadêmico da Faculdade. Moreira Lima também se envolveu, no Ceará, com um relevante trabalho de cunho social, dedicando-se à alfabetização de pessoas sem recursos em escolas noturnas gratuitas mantidas por uma loja maçônica, chegando a assumir a direção do estabelecimento.

Resolvido a tentar a vida no Norte do país, Moreira Lima se transferiu para a Faculdade de Direito do Pará. Após a conclusão do curso em Belém, passou a atuar como advogado no Acre por quase 10 anos.

Em 5 de julho de 1922, já fazia dois anos que Lourenço Moreira Lima havia retornado para o Rio de Janeiro e estabelecido escritório de advocacia na cidade, quando uma revolta militar que rebentou no Forte de Copacabana iniciava o chamado ciclo revolucionário tenentista. Segundo seu irmão Felipe Moreira Lima, Lourenço estava entre os partidários do movimento revoltoso que redundou no episódio célebre dos “18 do Forte”, mas escapara da prisão “por não ter podido participar, diretamente, do movimento, dado sua explosão súbita”.

Imagem: Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre

Debelada a rebelião pelas forças do governo, Moreira Lima continuou o seu envolvimento com o movimento revolucionário atuando, de forma abnegada e gratuita, como advogado de defesa dos implicados no levante.

A partir daí, Lourenço Moreira Lima ingressou, definitivamente, no movimento revolucionário, operando nas confabulações conspiratórias que redundaram na rebelião ocorrida, em 1924, em São Paulo, novamente em um 5 de julho. No dia da deflagração da revolta paulista, Moreira Lima já se encontrava em São Paulo para onde se deslocara para lutar ao lado dos amotinados. Com o insucesso do levante, foi preso quando tentava se juntar às forças rebeladas, comandadas pelo general Isidoro Dias Lopes, que haviam deixado a cidade.

Libertado, após cinco meses na prisão, Lourenço Moreira Lima, foi ao encontro dos revoltosos paulistas que estavam se reunindo com rebelados do Rio Grande do Sul em uma força que ficou conhecida como Coluna Prestes-Miguel Costa, em razão do nome dos seus comandantes e, depois, resumida apenas à Coluna Prestes, em referência ao nome do capitão do Exército Luiz Carlos Prestes. A Coluna atravessou o país, do sul para o norte, durante vinte e sete meses, passando por treze Estados, num percurso de cerca de vinte e cinco mil quilômetros. Na Coluna Prestes, Moreira Lima tinha o cargo de capitão e secretário e era o único civil a fazer parte do estado-maior da tropa.

Foi na Coluna Prestes que Lourenço Moreira Lima ganhou dos seus companheiros o apelido que carregou até o final da vida. Segundo Jorge Amado, porque “viam o advogado largar a pena de cronista para tomar o fuzil durante os combates, impávido e furioso contra o inimigo, chamaram-no de Bacharel Feroz. Era o civil junto aos tenentes chegados da Escola Militar do Realengo e da Força Pública de São Paulo”.

Com o fim da marcha, Lourenço Moreira Lima exilou-se na Bolívia, juntamente com Luiz Carlos Prestes e um grupo de remanescentes da Coluna. Aproveitando uma pequena distensão política que surgiu no governo do Presidente Washington Luís, Moreira Lima, que se encontrava doente, retornou clandestinamente ao Brasil. No Rio de Janeiro continuou, furtivamente, a conspirar contra a situação política vigente no país. Decidido a escrever a saga da Cavalgada Indômita, como ele chamava a Coluna Prestes, retirou-se para Santa Vitória do Palmar, uma pequena cidade gaúcha na fronteira do Uruguai, onde tinha amigos.

O livro que Lourenço Moreira Lima escreveu sobre a Coluna Prestes com o título de “Coluna Prestes – Marchas e Combates da Coluna Invicta e a Revolução de outubro” foi concluído em 1928 e, depois, Moreira Lima acrescentou um adendo sobre a revolução de 1930, mas que apareceu apenas na primeira edição que somente veio a sair em 1931, em dois volumes, hoje, raríssima. Em 1934, a obra foi publicada em São Paulo, na forma de fascículos, pela “Legião Cívica 5 de Julho”.

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