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Chichico

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Que pássaros gostem de comer roça de cereal isso nada de admiração deve causar; mas do tanto daquele ano fica difícil de admitir com regular naturalidade.

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Imediato começou a pendoar o arroz e chegaram nuvens imensas dos mais diversos tipos de bicho de asa. Um deus nos acuda… Salvar o que restava se transformou no único compromisso de toda a família, à cata de solucionar o problema. Na época, ninguém falava desses venenos que hoje acabam com insetos, passarinhos e pessoas, devastando sobremodo a Natureza.

– Vamos fazer um boneco de pau e vestir como gente – indicou o menino mais velho, metido a saber de tudo, lembrando-se de um que outro sítio avistara nas proximidades.

– Mas quem sabe fazer um trabalho assim? – interessou-se o pai, avaliando a limitação de tempo e arte dos habitantes do lugar.

– Seu Severino Carpina, que mexe com essas coisas para vender na cidade nos dias de feira – logo a mãe lembrou na busca do jeito que diminuísse a fome dos passarinhos. – Depois juntamos nele roupa folgada que balance no vento e ficará resolvido o assunto.

Juntos correram à casa do carpinteiro e dias mais acompanhavam o feitio da peça, que dentro de pouco tempo resultou numa bela figura, até de chamar atenção pelos traços desenhados com esmero.

Eis que posto no centro do arrozal, o espantalho funcionou que foi uma beleza, do modo previsto; às vezes chegava a causar efeito superior além do esperado, assustando gente e animais de maior porte, que, de noite, por desaviso, se aventurassem no eito do baixio entre os legumes maduros.

Melhorava também, nesse aspecto, o sertão. Esforços se destinaram às outras obrigações, não houvesse o inesperado que deu de crescer naquele inverno, pois as chuvas, antes calmas, quietas, transformaram-se em trombas d’água monumentais, nunca chegadas do jeito daquilo.

Antes de apanhados os primeiros grãos, a enxurrada levou quase tudo, inclusive o espantalho de afastar passarinho. Deus nos acuda fustigou a alma dos caboclos para aceitar de bom grado a ocorrência qual coisa do destino e a vida seguiria adiante.

Dentro do espírito abnegado que alimenta as pessoas simples, sua religiosidade natural, certo dia, alguns anos após o prejuízo, mãe e o filho mais velho rezavam novena em sítio afastado para onde mudaram, abaixo das terras antigas.

Cheios de fervor, acompanhavam as palavras da beata nas jaculatórias, quando a mulher observou santo novo, diferente, num dos altares laterais da pequena capela. Admirada, reconheceu nele as feições exatas de gente conhecida. Voltou-se ao filho e falou baixinho:

– Zé, tu reconhece a cara daquele santo dali? – perguntou, indicando o andor humilde no canto.

– É ele, é Chichico, mãe, nosso boneco que a cheia grande levou – embelezado, respondeu o menino, súbito acalmado pelos olhos severos da rezadeira fuzilando eles dois.

Na saída, a mãe ainda balbuciava as palavras derradeiras dos dizeres sagrados, e acrescentou: – Que ele interceda também por nós, que fomos seus amigos bem antes – enquanto desconfiados saíam acompanhando a quermesse pelo terreiro, sem nada revelar aos outros da real procedência da imagem familiar.

Obs.: História que ouvi de meu pai, Luiz Lacerda Leite.

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