Nas últimas semanas venho me sentindo um pouco sobrecarregado pelo mundo. Já havia comentado sobre a minha vontade de me ater a falar sobre a arte que tanto amo nesse espaço. Contudo, seria um erro crasso da minha parte fazê-lo. A arte, acima de tudo é um instrumento de seu tempo. Para entendê-la é necessário que entendamos também o mundo que a cerca. Como falar sobre arte sem falar sobre tudo?
Ao ouvir alguns “artistas” dizerem que não se interessam por política, por leituras e por tantas outras formas fundamentais de entendermos o mundo, eu desconfio rapidamente da sua competência artística. Como ser artista, um comunicador por essência, se não se tem um conteúdo a se comunicar? Seria um meio sem fim ou um fim sem meio.
Devo admitir que sou pouco curioso e inovador no que se refere às minhas curiosidades musicais. As leituras, apesar de amadas, tendem a se empilharem na mesinha de cabeceira (que já tem uma companheira abarrotada de livros não lidos), o cinema e a televisão exigem um tipo de concentração que eu não possuo no momento, contudo, as imagens jamais me abandonam. Acho bastante acalentador saber que apesar de vivermos num mundo em que as fotografias são as coisas mais banais que existem, estando as câmeras ao alcance de muitos, a fotografia, como expressão artística, ainda é um paquiderme presente em nossas vidas.
Imagens tem essa capacidade de serem o elefante na loja de cristais. De gerarem amor, ódio, repulsa, indignação ou tantos outros sentimentos em apenas um golpe de vista. Apesar de achar a língua inglesa um tanto fraca em seus termos, devo admitir que o verbo “to shoot” ser sinônimo de atirar e fotografar é absolutamente preciso. A fotografia e o tiro têm em comum a velocidade e o impacto. Além de serem tudo ou nada: se acerta, ou não. Simples assim.
Especialmente no fotojornalismo, a fotografia tem a responsabilidade de capturar o olhar do leitor que folheia seu jornal ou página de notícias, e passar, num piscar de olhos, a mensagem necessária. Nunca se fez tão verdadeiro o ditado de que “uma imagem vale mais do que mil palavras”.
Nas duas últimas semanas dois exemplos em especial me chamaram a atenção. Primeiro foi o alvoroço que uma fotografia, feita através da técnica de dupla exposição, feita pela fotógrafa Gabriela Biló. Na fotografia aparece, em segundo plano, o presidente Luís Inácio Lula da Silva, e em primeiro plano uma vidraça estilhaçada. A fotógrafa interpreta sua obra como se o presidente, que aparece sorridente e ajeitando a gravata, estivesse protegido, quase “blindado”, e o vidro estilhaçado serve quase como um “escudo” da figura presidencial. Contudo, muitos interpretaram a imagem como sendo uma alusão a um ataque ao presidente. Interpretando o vidro quebrado como um alvo para os terroristas. Qual a interpretação correta? As duas. Não existe certo ou errado na arte, contudo, podemos dizer que, sem dúvida a obra teve um impacto inegável. Podemos debater, se muito, se a mensagem que se pretendia passar foi aquela que se recebeu.
Em outro momento, surgiram imagens chocantes de Indígenas da etnia Yanomami esquálidos, vítimas de diversas enfermidades e assolados pela desnutrição quase crônica. No podcast “O Assunto”, a jornalista Natuza Nery, em entrevista com Dario Kopenawa, vice-presidente da Associação Hutukara Yanomami, abordou o tema das imagens chocantes que viajaram o mundo mostrando a política exterminatória do último governo. A respeito das imagens, o líder indígena comenta que em sua cultura a captura de imagens é proibida porque “a fotografia também pega a alma da pessoa”; contudo, diante da circunstância de calamidade os indígenas se permitiram ser fotografados para que sua situação fosse amplamente conhecida.
Aqui temos dois opostos de uma mesma arte. No primeiro caso, a imagem manipulada que, em outro contexto, poderia ser tida apenas como “interessante”, se muito. Mas no contexto atual pôde ser interpretada como uma apologia a um assassinato presidencial. No outro extremo temos uma fotografia que em outras condições globais seria proibida, uma violação das crenças do fotografado, contudo, no momento atual se fez necessário e chocou a todos que a viram com a sua crueza. A primeira provavelmente será esquecida na pilha de jornais, a outra, talvez, se torne o ícone de um desgoverno e de um genocídio patrocinado pelo Estado Brasileiro em pleno século 21.
Fato é que, no frigir dos ovos, a arte conta a vida e não uma sem a outra.