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Julgar é fácil, difícil é ser

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Como podes dizer a teu irmão: Permite-me remover o cisco do teu olho, quando há uma viga no teu? Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho, e então poderás ver com clareza para tirar o cisco do olho de teu irmão. (Mateus, 7: 4-5).

Somos ávidos em julgar e lentos em acolher. Com essa frase Augusto Cury mostra o quanto somos carrascos, o quanto julgamos pelas aparências sem nos importarmos com a dor e o sofrimento do outro. A superficialidade é a nossa marca registrada, olhamos as pessoas com olhar raso, enxergamos seu corpo, seu comportamento, mas não prestamos atenção a sua alma, a sua essência e o seu ser. Aquilo que realmente importa e o que realmente somos.

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Nos últimos tempos a intolerância, o julgamento, a discriminação e a rotulação são práticas comuns no nosso meio. Somos conscientes da unicidade do ser, mesmo assim, não somos aceitos, acolhidos e nem compreendidos. Ao nascer à única coisa que esperamos deste mundo, quando crianças, é ser aceitos, acolhidos e amados, ao invés disso, nos entregam um manual de instrução para seguirmos, e se nós não nos adequarmos a ele somos rejeitados e excluídos. Somos a ovelha negra da família e da sociedade a qual pertencemos.

Outro dia escrevi sobre a geração da década de 1980 e sua contribuição para a música brasileira. Vejo nela a clareza do tempo, o entendimento da vida sem frescura, sem rótulos e sem cobranças, o oposto da minha geração. Não quero aqui defender ou tentar convencer se estão certos ou errados, quero apenas não ser juíza, até porque não cabe a mim e nem a ninguém julgar o outro. Como um dia disse Jesus Cristo à mãe dos filhos de Zebedeu: Podeis beber o cálice que eu vou beber? Ninguém tem ideia da dor do outro e nem do sofrimento que o outro experimentou.

A irreverência, a transparência e o exagero de Cazuza deixaram uma marca não só na música, deixou também, em toda a sua geração. Em especial na sua canção intitulada IDEOLOGIA que mostra claramente qual o seu desejo e o tamanho da sua decepção com a política, com seus heróis, com seu tesão, e com o mundo que ele sonhou e pensou ser diferente. Em sua família era amado incondicionalmente, pois a sua mãe o aceitava, respeitava e amava do jeito que ele era, o que lhe rendeu o rótulo de mimado e mal-educado. Quando se jogou na vida pensou que o mundo faria o mesmo. Daí sua decepção.

Vou enfatizar neste texto três das suas canções que considero as mais irreverentes e mostram o dessabor do artista. Não que as outras canções sejam diferentes, mas estas três nos mostram claramente a sua angústia e insatisfação com o mundo em que vivia. São elas: IDEOLOGIA, O TEMPO NÃO PARA, BRASIL.

Corajoso e de personalidade forte Cazuza marcou a cultura popular brasileira com suas letras cheias de poesia e muita irreverência. Viveu pouco e intensamente. Homossexual assumido descobriu ser portador de HIV em 1987, quando a doença foi realmente diagnosticada, contrariando a vontade de sua mãe que temia a descriminação, em 1989 ele destemidamente declarou para o Brasil ser soropositivo sem se importar com a opinião dos outros a seu respeito. Em entrevista ao Globo Cultura, Lucinha Araújo relembra este momento junto ao filho:

Quando ele quis anunciar que estava com AIDS, ele me disse “eu não aguento mais esconder que estou doente, vou abrir a boca e vou falar”, eu pedi para ele não fazer isso. “As pessoas vão ficar com medo de você”. Mas ele rebateu: “Não importa“. Faz todo sentido para uma pessoa que canta “Brasil! Mostra tua cara”, que não pode esconder a sua num momento destes. (Lucinha Araújo, 2020).

Cazuza fez parte da geração de roqueiros dos anos de 1980. Filho do produtor musical, João Araújo e da cantora Lucinha Araújo cresceu no meio artístico convivendo com grandes nomes da MPB. Ícone da rebeldia, assim como os artistas de sua época, foi ele um reflexo do seu tempo, chegou cheio de charme, rebelde e de espírito livre seu começo de carreira coincidiu com a abertura política no Brasil, onde o nosso povo estava cansado de tantos desmandos e repressão.

Completamente diferente do estilo musical em que os brasileiros estavam habituados, surge aquele menino sedutor, desbocado e desbundado cantando as mazelas herdadas na sua geração e as muitas formas de amor com liberdade e sem preconceito. Cazuza era a liberdade em pessoa. Seu nome e suas imagens nos passam essa certeza.

Na sua discografia tem músicas memoráveis, divertidas e inesquecíveis. “Pro Dia Nascer Feliz” é um clássico e a revelação do amor feito depois das 22 horas, sentindo toda a dança e magia do amor escondido fazendo fita, pois todo dia é dia em nome do amor. O amor sem hipocrisia, real e as claras. Essa foi à vida que Cazuza quis e levou até ser levado para o infinito.

Em 1988 o Brasil passava pelo o processo de redemocratização, deixando para trás todo o passado escuro do regime militar e inaugurando um novo caminho em direção ao futuro livre e democrático. Revoltado com a desigualdade financeira e social, com a corrupção da classe política brasileira, Cazuza faz um manifesto político social em forma de canção – Brasil composta por ele, George Israel e Nilo Romero relata toda sua insatisfação e revolta com o processo indireto para as eleições no Brasil de 1985.

Na letra da música chama a montagem do colégio eleitoral para a implantação do voto indireto de festa pobre, da qual os brasileiros não foram convidados a participar, e ainda houve acordos financeiros (quero ver quem paga pra gente ficar assim), fazendo alusão aos países imperialistas que financiaram o regime ditatorial na América Latina, denunciando a participação dos Estados Unidos na política dos países que consideram de terceiro mundo.

Assim como está acontecendo atualmente, a inflação no período estava em alta, impossibilitando os brasileiros de pagarem as contas básicas; e como saída usavam o cartão de crédito (meu cartão de crédito é uma navalha), submetidos a juros altíssimos ficando reféns dos bancos e das financeiras. E num apelo consciente nos chama para a realidade quando diz: BRASIL MOSTRA TUA CARA!!!

Decepcionado, revoltado e insatisfeito com tudo e com todos; a letra de Ideologia fala do sentimento de um garoto que queria mudar o mundo e se desilude com a realidade apresentada no auge de sua juventude, depois de muitas batalhas e uma série de derrotas. Em meio a toda turbulência ele foi acometido por uma doença contagiosa e letal.

Assumiu que seu partido era um coração partido e que as suas ilusões estavam todas perdidas, o sonho daquele garoto que queria mudar o mundo tinha sido vendido, por uma quantia tão insignificante que ele mesmo não acreditou. Na nossa mocidade, assim, como na de Cazuza cultuamos e nos espelhamos em figuras emblemáticas, corajosas e destemidas, são eles nossos heróis, e esses também os decepcionaram, eles morreram de overdose, não foram capazes de aguentar o tranco da vida sem muletas, sem subterfúgios e sem entorpecentes.

Seu tesão e sua vida sexual agora era risco de vida, qualquer coisa que ele tentava se divertir (meu sex and drugs) oferecia perigo, não adiantava mais querer descobrir quem era ele (vou pagar a conta do analista pra nunca mais ter que saber quem eu sou), não interessava mais, o seu sonho era de mudar o mundo e agora ele assistia tudo de cima do muro, seus heróis estavam mortos e seus inimigos estavam no poder. Descobriu que tudo era balela, hipocrisia e mentira (ideologia eu quero uma pra viver).

Em 1989, já debilitado pela doença gravou o disco O Tempo Não Para durante um show no Canecão. A música título do disco nos passa a impressão de desabafo de um jovem cansado de correr na direção contrária, sozinho e sem ter aonde chegar (sem pódio de chegada) e sem recompensa (beijos de namorada), pois não vivia conforme as normas sociais vigentes. Sem alvo certo dispara contra o sol, sem propósito, e num ato de coragem e força ele se diz ser por acaso, não se deixou mover pela lógica e nem pela razão. O ser falou mais alto.

Mesmo com toda dor e sofrimento não desiste, não baixa a guarda, retoma o jogo e não se deu por vencido, porque os dados ainda estão rolando, o jogo não acabou e o tempo não para. Enfrenta os dias com luta, sobrevive e se mantem forte, inteiro. Mas não deixou de enxergar a podridão da sociedade brasileira, dos ricos do Brasil (sua piscina está cheia de ratos), por trás da opulência se esconde a sujeira, os negócios escusos e os escândalos, e que de nada adianta esconder ou tentar enganar-se, pois os fatos falam por si (tuas ideias não correspondem aos fatos). Porque o tempo não para, ele é revelador.

A inevitabilidade da passagem do tempo foi uma constante na vida do artista que sabia da sua finitude, a vida era uma matéria fina que a qualquer momento podia se perder ou quebrar ou partir, e ver no tempo a vida se eternizar através da História que se repete ciclicamente (eu vejo o futuro repetir o passado, eu vejo um museu de grandes novidades). Se estudarmos a história da humanidade os fatos atuais já aconteceram antes em outro tempo, às vezes no mesmo espaço, alternando e alterando os personagens. Porque o tempo não para, não para não.

Ele ver tudo se repetir, apesar das lutas e já cansado ver tudo igual, não tem nada que mereça comemoração; agora seus dias se tornam uma eterna busca de algo que ele mesmo não consegue achar (procurando agulha num palheiro), e volta a criticar o cenário de luta, de batalha e de miséria do povo brasileiro (nas noites de frio é melhor nem nascer, nas de calor se escolhe matar ou morrer), é assim que vive a maioria dos brasileiros na extrema pobreza, na mais absoluta desgraça (e assim nos tornamos brasileiros).

Num grito de revolta expõe as críticas e as injúrias que sofre por parte da sociedade, da mesma sociedade hipócrita que ele denuncia e escancara (te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro), da droga vendida por essa mesma sociedade que o discrimina. Sabemos que os grandes financiam os pequenos, sendo eles mesmo que fazem do país essa bagunça, essa zorra toda, tudo em nome do lucro, do capital e de interesses próprios (transformam o país inteiro num puteiro, pois assim se ganha mais dinheiro). Porque o tempo não para, não para não.

Hoje o nosso cotidiano é semelhante ao cenário de 1980 tempos em que Cazuza viveu. À música do destemido Cazuza é muito atual, é atualíssima, é um verdadeiro hino de revolta e de basta a toda esta situação. O autoritarismo, a inflação, o lucro fácil para os grandes voltou no nosso tempo e com o aval e a conivência da mesma sociedade que discriminou, odiou e abusou de seres como Cazuza que mostrou muitas vezes a sua cara.

A minha opinião a respeito de Cazuza é o oposto daqueles que tentam a todo custo desmerecer seu talento, manchar sua imagem e seu valor para a cultura brasileira. Ele foi sim, um cara consciente da sua vida e do poder que sua mente brilhante tinha.

Infelizmente, aqueles que falam o que pensam e que denunciam os abusos e os desmandos são odiados, discriminados e excluídos por não fazerem parte dos esquemas e da roubalheira que aliena e afunda o povo brasileiro na mais absoluta cegueira e miséria.

É! Cazuza, nós estamos cansados de correr na direção contrária, estamos procurando uma IDEOLOGIA para viver, estamos esperando o BRASIL MOSTRAR A SUA CARA, PORQUE O TEMPO NÃO PARA, NÃO PARA NÃO.

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