Como sempre costumamos fazer, voltávamos para casa ouvindo no rádio do carro um dos muitos noticiosos de todas as manhãs. A pauta tinha como tema central a presença ostensiva da mendicância nos locais públicos e nos semáforos das nossas cidades.
Aliás, a mendicância nas ruas é um cenário que havia desaparecido e não se repetia até a data fatídica do golpe parlamentar de 2016, que mudou tudo para pior.
No período que antecedeu ao golpe parlamentar, o Brasil tinha sido retirado do mapa da fome graças aos programas sociais dos governos anteriores, com destaque para as gestões 1 e 2 do presidente Lula, sequenciada pelo governo da presidenta Dilma Rousseff, permanentemente atribulado por uma conspiração odienta de conteúdo golpista.
A partir de 31 de agosto de 2016, tudo quanto era proteção e seguridade social dirigida aos aglomerados populacionais mais frágeis, passou a ser questionado e desregulamentado, quando não extinto pelo tsunami Temer /Bolsonaro.
Diante desses fatos e da desassistência social aos vulneráveis, o circo da fome voltou a exibir o seu espetáculo macabro na via pública a partir de 2016.
O congresso nacional, de há muito hegemonizado pelas elites, escalou o impeachment (golpe) que afastou a presidenta Dilma Rousseff, legitimamente eleita pelo povo brasileiro. A presidência da república foi ocupada de forma provisória por um vice presidente traidor, o qual houvera conspirado e contribuído com o golpe. O pusilânime Michel Temer assumiu o cargo com uma postura passiva diante da onda ultraneoliberal e antinacional que entrava em cena naquele momento.
Na esfera da Justiça e do Ministério Público Federal, a farsa da Operação Lava Jato agia simultaneamente na chamada república de Curitiba, pilotada pelo então juiz Sergio Moro, tendo como coadjuvante o promotor federal Deltan Dallagnol.
Atropelando o rito processual, operavam um engenho jurídico de moer reputações, baseados apenas em delações premiadas e em evidências, sem que apresentassem uma única prova documental concreta. O projeto político que engendraram serviu para afastar Lula da campanha, e pavimentar a pista para as futuras peripécias e demais pantomimas de Jair Bolsonaro, um ator bufão do pastoril da desordem que foi eleito graças à farsa da república de Curitiba.
Os programas sociais que foram criados e mantidos nos governos do presidente Lula e da presidenta Dilma, haviam tirado o Brasil do mapa da fome e mudado a fisionomia social do país. Todavia, a inexistência de políticas públicas que dialogassem com os desvalidos, fez com que as mãos esquálidas dos famélicos que não eram mais vistas estendidas aos transeuntes, irrompessem nos locais públicos, notadamente nos semáforos das cidades brasileiras.
Convenhamos que, a rigor, o Brasil não saiu do mapa da fome. A verdade é que o país foi afastado da face mais visível e aguda da fome que é a falta de alimento, por uma decisão política dos governos Lula/Dilma.
A comprovação desse avanço social mínimo, ocorreu aqui na região semiárida do Nordeste, durante a grande escassez de chuvas que ocorreu entre 2012 e 2018.
Nesse período não se verificou um saque sequer, que fosse praticado pelos famélicos em quaisquer das feiras livres das cidades brasileiras. Milagre? Não! apenas a adoção de políticas públicas de combate e erradicação da fome postas em prática por governantes socialmente comprometidos.
Ao ver o retorno da fome recheada de miséria e presenciar novamente o exército de andrajosos e famintos invadirem às ruas das nossas cidades, algumas interrogações nos vieram à mente.
Seriam os famintos, apenas uma horda de preguiçosos e desocupados? Com certeza que não! Teriam eles se adaptado à fome? Também não! Teriam eles sido vencidos pelo desanimo? Talvez! A situação de fragilidade social em que se encontram teria se tornado banal diante do olhar dos transeuntes? Com certeza que Sim, para a maioria das pessoas! Seriam eles um caso de polícia? Sim para o poder econômico, sim para o estamento judiciário, sim para a pequena burguesia, sim para o aparelho policial, sim para os insensatos e incrédulos.
A conceituação preliminar deste artigo se fez longa, porém necessária para nos ajudar a demonstrar que a fome é apenas um efeito. A causa real da fome é de motivação econômica e financeira. Paremos de dizer asneiras como: sempre foi assim! A fome sempre existiu, é Deus que quer assim! (vejam que blasfêmia)
Voltemos ao programa de rádio objeto deste artigo, para tentar lermos conjuntamente a preocupação dos apresentadores. Ela crescia de forma exponencial durante o decorrer do debate, junto com a indisfarçável intenção de relativizar e esconder a causa dessa chaga social.
A angustia com que conduziam o programa citado, talvez se deva ao fato da cidade está cheia de turistas, os quais voltarão aos seus pagos levando consigo uma imagem não muito recomendável da Parahyba, seja da nossa capital, seja do nosso estado.
A recente revelação do genocídio dos Yanomamis, nos fez lembrar uma notícia que circulou na década de 1960 na cidade do Rio de Janeiro, que ainda hoje repercute.
Era voz corrente entre os nossos colegas de curso de especialização em saúde pública na ENSP/FIOCRUZ, que o então governador do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, teria determinado o aprisionamento de todos os mendigos que perambulavam pela zona sul da cidade, e dado ordens para joga-los nas águas do Rio Guandu. O ato cruel e criminoso que teria sido praticado pelo citado governante, tinha como propósito limpar o visual da “cidade maravilhosa” que naquela época se preparava para celebrar o seu IV Centenário de fundação.
A história registra que o processo de remoção de favelas e de cortiços na cidade do Rio de Janeiro não é novidade. Ele vem desde o início do século XX durante o governo Rodrigues Alves.
A reforma sanitária posta em prática pelo Prefeito Pereira Passos, além de atender aos reclamos de parceiros comerciais externos, coincidiu com a epidemia de malária que se alastrou na cidade, e se transformou na famosa revolta da vacina, com o estimulo do exercito, sequioso por um golpe militar. (essa tutela é coisa antiga) Por isso o exercito propalava o negacionismo, estimulando o povo a não aceitar a vacina através do programa vacinal de Oswaldo Cruz e Carlos Chagas.
Além da questão da reforma sanitária, o Rio de Janeiro, capital do país, crescia em ritmo acelerado e precisava de espaço físico para se expandir e modernizar a urbe ao gosto da burguesia.
Como se sabe a belíssima cidade do Rio de Janeiro é confinada entre o mar e a montanha, e em que pese esse recorte geográfico lhe conferir uma beleza incomum, o relevo dificulta em muito a construção civil.
O Morro do Castelo, um dos acidentes geográficos situado no centro da cidade, passou por uma demolição total e desapareceu completamente do mapa. O seu local ainda hoje é chamado a Esplanada do Castelo.
A obra desalojou 4200 moradores que ocupavam as suas encostas, os quais foram escorraçados para a periferia da cidade (com distancias de 38Km caso da Cidade de Deus, e 43Km como a Vila Kennedy.)
O aterro do flamengo recebeu grande parte do material de desmonte do Morro do Castelo e a partir de então, uma vez definido o relevo da área central, a politica de remoção de moradores dos morros tornou-se uma rotina.
Era uma prática comum aos governos que se sucederam até chegar ao governo de Carlos Lacerda, entre 1960 e 1965, período coincidente com o ano do IV centenário da cidade.
Não havia de fato nenhuma intenção governamental de integrar os moradores à vida cidade e sim de remove-los para locais periféricos distantes, sem transporte regular, sem infraestrutura e longe da vista da população chique da “cidade maravilhosa”.
O governo Carlos Lacerda removeu 41.958 moradores de favelas, que nessa época tiveram como única opção de moradia, as longínquas Vila Kennedy com 43 Km de distância e a Cidade de Deus com 37 Km. (vejam que já usavam o nome de Deus em vão naquela época)
Carlos Lacerda, era um conspirador costumaz e um dos maiores escaladores de golpes de estado pós 1930. Regente da chamada banda de música da UDN, pelo que comentam esteve envolvido na conspiração final que levou Getúlio Vargas ao suicídio, além de ter sido um dos capitães do golpe militar de 1964.
Contra ele, pesa a acusação de veracidade questionável, de haver mandado jogar os mendigos que enfeiavam as ruas da cidade, nas águas do Rio Guandu, fato carente de comprovação.
O que aprendemos é que as remoções de favelados feitas no seu governo, eram radicais, violentas, inconsequentes e teriam sido executadas pela secretária de estado Sandra Cavalcanti, prima do apresentador de televisão Flávio Cavalcante, um expoente e arauto da extrema direita.
A única matéria referenciada que encontramos sobre o assunto em tela foi extraída do Facebook na página Iconografia da história, publicada em 30 de setembro de 2017 sob o título: O Extermínio de mendigos no governo Lacerda.
“A função do historiador é lembrar a sociedade daquilo que ela quer esquecer.” – Peter Burke.
É perigoso apoiar medidas que visam a “limpeza das cidades”. Na história, temos vários casos que não deram certo.
A ideia fixa de Lacerda, (segundo investigações de uma CPI) era acabar com os mendigos do Centro e Zona Sul do Rio de Janeiro com uma solução simples: matando.
No começo de 1963 uma equipe do jornal a Última Hora, liderada pelo Luarlindo(?) Ernesto Silva, seguiu um comboio policial e flagrou agentes jogando mendigos de cima de uma ponte. Os jornalistas conseguiram salvar uma das vítimas, e realizou, partindo de seu depoimento, uma série de matérias jornalísticas denominadas: Política do Mata-Mendigos. A relatoria da CPI, aberta para investigar o caso, encontrou mais de 50 casos de desaparecimentos de moradores de rua, o número só não foi maior, pela dificuldade de identificar esses indivíduos. Com o Golpe Civil-Militar de 1964 a CPI foi arquivada”
Voltemos ao programa de rádio, onde a preocupação cresceu entre os apresentadores, temerosos de que os turistas que inundaram a cidade, ao voltarem aos seus pagos, levassem consigo uma má impressão.
O interessante é que na ânsia em solucionar o problema dos famintos, eles propuseram uma solução “salomônica” com a presença de alguns protagonistas, todos da esfera policial e jurídica, tais como: o Conselho Tutelar, o Ministério Público, a Polícia e o Juizado de Menores, a rigor, parte do aparelho repressivo do estado.
Para os apresentadores do programa em tela, a questão da fome é tratada como um caso de polícia e não como uma grande dívida social que o governo e a sociedade tem para com uma população miserável.
Ao nosso ver, como eles são formadores de opinião, ao não descerem às raízes da questão preferindo tratá-la de maneira superficial e simplificada, estão difundindo uma proposta equivocada, por ignorância ou por má fé.
Ora, o verbete fome é bem mais amplo e abrangente do que possamos imaginar e não se cinge apenas à falta de alimentos. Ele bem mais amplo e envolve outros personagens para além da falta de alimentos. A começar pela progenitora que é a mãe.
Como sabemos o alimento chega ao feto através do cordão umbilical, e é evidente que uma mãe faminta não pode gestar e parir filhos saudáveis.
Se analisarmos o verbete fome no latu sensu da palavra, verificaremos que ele está associado à um outro verbete, que é falta, e chegaremos à conclusão que a questão de fundo é de origem econômico-financeira.
Vejamos o que nos ensina ninguém menos do que o mestre Josué de Castro:
“A fome é, conforme tantas vezes tenho afirmado, a expressão biológica de males sociológicos. Está intimamente ligada com as distorções econômicas, a que dei, antes de ninguém, a designação de “subdesenvolvimento”. A fome é um fenômeno geograficamente universal, a cuja ação nefasta nenhuma continente escapa. Toda a terra dos homens foi, até hoje, a terra da fome. As investigações científicas, realizadas em todas as partes do mundo, constataram o fato inconcebível de que dois terços da humanidade sofrem, de maneira epidêmica ou endêmica, os efeitos destruidores da fome. “
No caso brasileiro, mais de 60% da população tem fome de: emprego, trabalho, moradia, saneamento básico, educação, saúde lazer e alimento. Portanto, para o enfrentamento dessa chaga social, teremos de entender que a fome é uma questão de estado. Ninguém vai resolver o problema secular da fome sem priorizar o financiamento de políticas públicas que abarquem todas essas fragilidades sociais citadas. E não venham com a chorumela da falta de recursos, sem antes olhar para o gráfico abaixo e verificar que o sistema financeiro sequestrou o orçamento da união e isso vem ocorrendo de forma crescente desde 2017.
Não há como negar que as campanhas filantrópicas para arrecadação de alimentos são meritórias, porém são também paliativas.
Promover o Natal sem Fome não deixa de ser um gesto nobre, mas nos perdoem a sinceridade, é uma iniciativa que serve muito mais para aliviar a dor da nossa consciência.
A saciedade pontual do Natal ocorre em um único dia perdido em meio aos outros 364 dias de fome do ano. Ele nos mostra apenas e tão somente, que a fome existe e precisa ser enfrentada, por ser feia e dolorosa.
Pela opinião dos apresentadores do programa de rádio, que simplificaram e relativizaram o problema, tudo começa pela abordagem dos famélicos através do Conselho Tutelar-CT que, não tendo poder de polícia convoca o aparelho policial para auxiliá-los.
Esse tipo de abordagem se repete algumas vezes sem sucesso, até que impaciente e apressado o CT encaminha um relatório dirigido ao Ministério Público-MP solicitando apoio.
O MP comparece ao local acompanhado do policiamento e os “infratores” são conduzidos até a presença do juizado, que pode ser o juizado comum ou o juizado da infância e da juventude. Depois de uma breve entrevista, os famélicos serão encaminhados a algum órgão assistencial ou prisional.
O “infrator” que para o establishment é um estorvo, pode até não voltar imediatamente às ruas e ao mesmo local. Todavia com certeza procurará outro cruzamento para continuar o seu calvário, diante da leniência do poder público e do olhar indiferente de grande parte da população. Até quando essa cena irá se repetir!
Pense muito nisso ao escolher os seus representantes políticos!
Consulta:
Lula e Dilma reduziram desigualdade e governaram para todos (institutolula.org);
Artigo | A fome está de volta às ruas | Opinião (brasildefato.com.br);
Livro: Geografia da fome: Josué de Castro;
Fotografia:
Rio de Janeiro – História da Cidade – A cidade em seus 400 anos de fundação;
Lula e Dilma reduziram desigualdade e governaram para todos (institutolula.org);
Artigo | A fome está de volta às ruas | Opinião (brasildefato.com.br);
Pin em Filosofia oriental (pinterest.com);
https://brasilianafotografica.bn.gov.br/?p=1403;
Josué de Castro, símbolo vivo do combate à fome – meionorte.com;
Vila Kennedy – 1965 As… – Memórias do Subúrbio Carioca | Facebook;
Impressões de Guerra na Cidade de Deus | Mamapress (wordpress.com);
Câmara autoriza instauração de processo de impeachment de Dilma com 367 votos a favor e 137 contra – Notícias – Portal da Câmara dos Deputados (camara.leg.br);
O problema das contas públicas tem nome: Sistema financeiro (epublico.com.br);