Um dos sons mais conhecidos pelos brasileiros é aquele que anuncia o programa radiofônico “A Voz do Brasil”. O programa, que resiste há 87 anos – foi “ao ar” pela primeira vez em 22 de julho de 1935 – inicialmente chamava-se “Hora do Brasil” – e tinha a finalidade declarada de irradiação para todo o país de “chronicas feitas dentro da technica do radio, sobre o momento nacional; cultura geral, assumptos historicos, agricolas, artisticos, educacionais, sportivos, judiciarios, literarios, sobre turismo, assumptos infantis e informação em geral”. Apesar da amplitude dos assuntos da pauta do programa, “A Hora do Brasil” era, na realidade, um instrumento de propaganda do governo do Presidente Getúlio Vargas.
Os majestáticos sons de metais que anunciam, há quase nove décadas, o início da “Voz do Brasil” fazem parte da abertura da ópera “O Guarani” composta pelo compositor Antônio Carlos Gomes. Curiosamente, a conhecida Protofonia de “O Guarani” não fazia parte, originalmente, da partitura da ópera e só, posteriormente, foi introduzida pelo seu autor.
O escritor Vasco Mariz considerava Carlos Gomes o maior compositor das Américas no século 19 e o maestro Guerra Peixe, que segundo o crítico musical Luiz Paulo Horta, “não jogava elogios fora”, achava que Carlos Gomes era “o nosso compositor mais competente”. Para Horta, Carlos Gomes foi “o primeiro representante da arte brasileira a ser levado a sério na Europa”. Até a noite do dia 19 de março de 1870, quando “O Guarani” estreou no teatro Scala, em Milão, a arte brasileira não tinha nenhuma importância internacional.
Apesar de ser considerado um dos maiores compositores brasileiros em todos os tempos, ao ponto de ter sido editado um decreto presidencial, em 2 de abril de 1979, que o declarou “Patrono da Música no Brasil” o maestro e compositor Antônio Carlos Gomes é pouco conhecido no país. O escritor Rubem Fonseca escreveu no seu romance biográfico “O Selvagem da Ópera”: “Quantas pessoas em nosso país sabem realmente quem é Carlos Gomes? […] um músico que depois de amado e glorificado foi esquecido e abandonado”.
Um dos 26 filhos, em três casamentos e fora deles, de Maneco Músico, o mestre da banda marcial da então pequena vila de Campinas, Antônio Carlos, o “Tonico”, nascido em 1836, já demonstrava quando criança uma grande aptidão para a música, tocando quase todos os instrumentos na banda regida por seu pai e, aos quinze anos, começou a fazer as suas primeiras composições. Trabalhando em Campinas como auxiliar de alfaiataria e dando aulas de música, o exuberante talento de Carlos Gomes chegou ao conhecimento de estudantes paulistanos, que o convidaram a se apresentar na capital paulista. Em São Paulo, Carlos Gomes foi introduzido em um grupo de jovens estudantes do qual participavam figuras que, no futuro, exerceriam papel de destaque na vida política do país, como Prudente de Morais e Campos Sales, que chegaram à Presidência da República.
Em parceria com o poeta e acadêmico de Direito Francisco Leite Bittencourt Sampaio, Carlos Gomes compôs, em São Paulo, os seus primeiros grandes êxitos: o “Hino à Mocidade Acadêmica”, adotado até hoje pelos estudantes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, e a modinha “Quem Sabe” (Tão longe de mim distante, onde irá, onde irá teu pensamento) uma das músicas mais conhecidas do compositor campineiro. Apesar do seu sucesso na capital paulista, Carlos Gomes, que, até então, era praticamente autodidata, foi incentivado a ir para a Corte, no Rio de Janeiro, para adquirir uma formação musical mais consistente. Embora já tivesse quase vinte e três anos, mas como sabia que o seu pai, que era extremamente dominador, não consentiria na sua partida, Carlos Gomes resolveu fugir de Campinas.
No Rio de Janeiro, com a ajuda da Condessa de Barral, “amiga dileta” de Pedro II, Carlos Gomes foi recebido pelo Imperador que o recomendou a Francisco Manuel da Silva (o autor do hino nacional) que era o diretor do Imperial Conservatório de Música. Carlos Gomes permaneceu no Rio por quatro anos, um período em que estava despontando o movimento da ópera nacional e que se caracterizava pela valorização da língua portuguesa nos textos que eram cantados e pela escolha de temas brasileiros nas peças. Foi nesse ambiente que Carlos Gomes compôs as suas duas primeiras óperas. Concluída a sua formação no Imperial Conservatório, Carlos Gomes conseguiu com o Imperador uma subvenção para que ele fosse para a Itália estudar composição, durante quatro anos, em Milão.
Carlos Gomes chegou à Itália em 1864 e lá viveu 32 anos, até bem próximo da sua morte. Na Itália, completou os seus estudos, conquistou os seus maiores êxitos, casou e nasceram os seus filhos que foram educados no país. Para o musicólogo Luiz Heitor, “Carlos Gomes, efetivamente, embora muito apegado ao Brasil, fez parte da vida musical italiana […] no fundo, o seu temperamento, como as suas predileções artísticas o impeliam para lá […] foi a sua segunda pátria, onde foram criadas quase todas as partituras líricas que escreveu”. Essa situação teria ocasionado no Brasil, segundo o escritor Mario de Andrade, certa crítica: “Alguns o combatiam por inveja ou ciúme. E havia muitos incrédulos […] Talvez já estivesse arraigada na gente a tradição do Brasil de duvidar dos seus filhos”.
Em diversos lugares do país existiam clubes e sociedades homenageando Carlos Gomes. Em uma das suas viagens ao Brasil, em 1882, na escala do navio que o trazia da Europa, o compositor foi recepcionado no Recife por um clube que levava o seu nome e que tinha como orador o paraibano João Coelho Gonçalves Lisboa, que, na época, era um dos mais requisitados tribunos nos movimentos acadêmicos da Faculdade de Direito do Recife. Coelho Lisboa, com a implantação do regime republicano no país, viria a ter papel destacado na política paraibana. Na capital da Paraíba, também existia um “Club Carlos Gomes” com uma orquestra regida pelo professor Luiz Monteiro e que participava de eventos e solenidades na cidade.
O grande sucesso que alcançou a ópera “O Guarani”, a primeira das que foram compostas na Itália por Carlos Gomes, fez com que ficasse ofuscada a produção subsequente do compositor brasileiro, constituída por peças como a ópera “Fosca” na qual, no conceito de Mário de Andrade, “ele pretendeu se elevar acima de si mesmo, e avançar em arte, um pouco além do ponto em que jazia a italianidade sonora do tempo”. Depois de “O Guarani”, Carlos Gomes passou a viver em altos e baixos do ponto de vista artístico, além de que, por algumas vezes, se encontrar premido por dificuldades financeiras que vieram a se agravar com a queda do poder do seu protetor, o Imperador Pedro II, decorrente da implantação da República no Brasil.
Um dos biógrafos de Carlos Gomes, Juvenal Fernandes, relata que, no início de 1890, nos primeiros tempos do regime republicano no país, o compositor teria recebido, na Itália, a notícia de que haveria um depósito em um banco, em seu nome, de 20 contos-ouro, feito pelo Governo Provisório para que ele fizesse o Hino da República. Em consideração aos laços de amizade e as dívidas de gratidão que ele tinha com o Imperador deposto, Carlos Gomes recusou a encomenda. Essa decisão do compositor campineiro não foi bem recebida pelo Governo brasileiro que o preteriu quando da escolha da direção do Instituto Nacional de Música nomeando para o cargo o maestro Leopoldo Miguez, exatamente aquele que havia composto o Hino recusado por Carlos Gomes.
No final da vida, acometido por um câncer na garganta, Carlos Gomes decidiu morar no Brasil. Após ter recusado a direção da Escola de Música de Veneza, se transferiu para a cidade de Belém, onde assumiu o recém-criado Conservatório de Música do Pará. No ano anterior ao seu falecimento, ocorrido em 16 de setembro de 1896, em Belém, Carlos Gomes fez uma breve visita à capital da Paraíba, aproveitando a escala no porto de Cabedelo do paquete em que viajava. O jornal paraibano “A União”, de 12 de julho de 1895, noticiou o fato:
“saltou, hontem, nesta capital, de passagem para o Estado de Pernambuco, o grande compositor brazileiro Carlos Gomes. A surpresa da ligeira visita do eximio maestro a esta cidade, além de muito agradavel, constituio uma grande honra para nós parahybanos, que tivemos opportunidade de conhecer pessoalmente o laureado artista brazileiro.
O distincto maestro hospedou-se em casa do Sr. Custodio Domingos dos Santos, negociante desta cidade, onde lhe foi servido um lauto almoço, depois do qual sahiu a percorrer diversos edificios desta capital. Visitou o palacio do governo, palacio episcopal, o Theatro Santa Rosa, que estava exteriormente embandeirado, e a catedral. Depois do que, foi visitar a casa onde funciona o Club Euterpe, que mandou uma comissão ao seu desembarque.
Os rapazes do Club offereçeram ao maestro um lunch, durante o qual foram erguidos calorosos brindes ao insigne compositor, fazendo-se ouvir por essa occasião as bandas de música do Club, 27º batalhão e do Corpo de Segurança.
A’s tres horas da tarde partiu o maestro para o porto de Cabedello, a fim de continuar sua viagem, tendo sido acompanhado até a estação central da Conde d’Eu por grande numero de pessoas e commissões, tocando na mesma estação as referidas musicas.
Tivesse esta cidade sabido com antecedencia da honrosa visita do laureado maestro, certamente preparar-se-hia para fazer-lhe uma recepção mais digna. Entretanto, embora a surpreza desta visita, foi o maestro alvo de estrondosa manifestação do povo parahybano, que, no percurso do Club para a estação central, o acclamava delirantemente, em enorme multidão”