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300 milhas a oeste de Cabo Verde

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Por ter um sobrenome pouco comum, muitas vezes me perguntaram “de onde é esse nome?”. Bem, é de papai que recebeu da minha avó e ela da mãe dela, Dona Maria, minha bisavó, que recebeu do pai dela, José.

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Com o passar do tempo descobri que saber, num rápido vasculhar da mente, até quatro gerações antes de mim é um gigantesco privilégio de uma pessoa branca.

Enquanto José Couras, avô de minha avó estava se preocupando com suas terras, bois e pés de algodão, os antepassados de outras pessoas estavam preocupados com o seu destino, ou de sua família, que poderiam ser vendidos como se animais fossem. Conhecimento também é um privilégio.

Imagem meramente ilustrativa de árvore genealógica – Wikimedia Commons

Na minha mente, que eu classifico como uma gigantesca biblioteca em que livros não amontoados sem capa ou classificação, repousam algumas informações relativas ao conhecimento de sua ancestralidade. Um deles é que por muito tempo no Brasil, ainda Colônia, Reino Unido ou Império, o acesso a cargos importantes dependia para além de conhecimento, riqueza ou poder. Para se ascender a certos postos da administração o indivíduo não poderia, além de alguns outros privilégios, padecer do “defeito de cor” ou do “defeito mecânico”, que trocando em miúdos significa que não poderia haver nenhuma ascendência mestiça, ou que em algum momento da história, um familiar tenha trabalhado com algum ofício “mecânico”, o famoso trabalho braçal. Para além, os chamados “cristãos novos” não poderiam receber títulos ou cargos, ou seja, se algum de seus avós não fosse cristão batizado, você poderia dar adeus ao seu emprego público.

Felizmente, nas cercanias da independência do Brasil, declarou-se que brasileiro seria todo aquele que residisse no território nacional e que não requeresse outra nacionalidade distinta, e que dali em diante seriam brasileiros todos que nascessem no território do Império. Assim, uma massa disforme de indígenas, africanos e europeus passaria a formar o contingente populacional de um dos maiores impérios da história.

Mas a que se deve essa explanação toda? Bem, isso para dizer que não só eu, mas grande parte das pessoas que conheço conseguem traçar suas ancestralidades a um espaço geográfico muito bem definido: o nordeste. Essa poção de terras que já constava como domínio de Portugal antes mesmo dos europeus conseguirem chegar a um consenso se as novas terras se tratavam de um continente ou arquipélago. A área que estaria a aquém do limite de 300 milhas a oeste de Cabo Verde. Seja através de nossas raízes autóctones ou através de uns poucos brancos que se apossaram das terras quase 400 anos atrás, nossa marca é indelével e profunda na construção do que hoje consideramos o Brasil.

Assim, longe de mim querer devolver uma xenofobia europeizada com mais xenofobia, mas acredito que aqueles que chamam o nordeste de região subdesenvolvida ou de povo analfabeto mal constaria como possuidor de nacionalidade brasileira se fizéssemos como muitos países europeus que consideram apenas o sangue como baliza naturalizadora de seus cidadãos. Pouco mais de um século se passou quando famintos europeus eram exportados para as Américas como meio de desafogar a Europa de seus miseráveis, e branquear o nosso continente diverso.

O fato é que o Brasil em sua grandiosidade, desde a independência da metrópole europeia, adota um comportamento cosmopolita em que abraçamos o novo, o ressignificamos e nos apropriamos dele. Ao contrário do que ocorre com o português europeu, nós não nos preocupamos em rotular origens, traduzir expressões e mantermos a pureza na nossa língua. Afinal de contas tudo que somos é uma criação. Mangueiras indianas, abacateiros da América Central convivem pacificamente com cajueiros e pitangas nos mais brasileiros dos quintais.

Alguém consegue imaginar usar um “rato” para mover o cursor ao escrever um texto no computador? Eu prefiro usar o meu mouse. Até o mais prosaico romance ganha calorosos ares tropicais ao ser chamado de affaire.

O Nordeste e nós, nordestinos, graças às mais benfazejas divindades que nos guardam, temos uma curtíssima memória. Não nos lembramos do que foi, não temos orgulhos ufanistas que nos prendem a um passado que não existiu. Nunca tivemos como objetivo sermos mais ou melhor que quem quer que seja. Não temos por costume sofrermos com uma síndrome de cachorro vira-lata pois somos orgulhosos de nossa mestiçagem. Provar o que para quem? A história nos fez o que somos. Nem europeus, nem africanos, nem mais indígenas, somos brasileiros.

Talvez um pouco caso perdido, o Nordeste foi posto de lado já com o fim do ciclo do açúcar e a descoberta do ouro em Cuiabá, Ouro Preto e tantos outros veios e aluviões espalhados continente adentro. Ainda tivemos outros respiros com os ciclos do cacau, agave e algodão, mas o fato é que o desenvolvimento de uma região que é majoritariamente composta por um clima semiárido não pode depender da agricultura, ao menos não nos moldes que sempre se usou, e ainda se usa, no país.

Em pleno 2022 se falar de desenvolvimento através de agricultura ou extrativismo é o cúmulo da ignorância. Somos um grande polo tecnológico, energeticamente autossuficiente e, sim, responsáveis, em boa parte, pelo abastecimento nacional de alimentos, principalmente alimentos frescos. O Nordeste não produz comodities, produz alimentos. Talvez o nosso peso na balança econômica não seja tão significativo como a soja, o café, a laranja ou o açúcar produzido mais ao sul, mas o nosso peso está na mesa do brasileiro.

Para não continuarmos aqui batendo palma para ver doido dançar, encerro dizendo uma constatação simples: pobres e ignorante não somos nós, são aqueles que não conseguem ver nossa riqueza e nossa sabedoria. Ainda, brasileiros são aqueles que sabem, sentem e se orgulham do povo diverso que somos e não meia dúzia de viúvas de terras antigas.

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