No último dia 24, a jornalista e apresentadora Maria Beltrão foi recebida pelo Papa Francisco, que ao receber uma caixa de brigadeiros da jornalista lhe indagou uma questão um pouco profana: “Cachaça é água?”. Uma gracinha fazendo referência à marchinha de carnaval “Cachaça não é água”, de autoria do baiano Marinósio Trigueiros Filho que embala carnavais desde 1953. Como disse a apresentadora se referindo à nacionalidade do Santo Padre: “Latino, a gente se entende”.
Ainda falando em águas latinas, outro dia me deparei com uma insólita reportagem do jornal “A Folha de São Paulo” em que se falava a respeito do direito de uso da água em território Chileno. A matéria explicava que o nosso vizinho possui um Código de Águas que outorga o uso da água ao agronegócio através de concessões hereditárias. O Código, promulgado em 1981, no mesmo ano da Constituição do governo pinochetista, é um instrumento legal que só existe no país andino.
O absurdo apoio ao agronegócio é tanto que na província de Petorca, uma das responsáveis pela grande produção nacional de abacate, importante produto na balança comercial chilena, não há água para a população local que depende de caminhões pipa e água engarrafada para o seu consumo.
No Brasil, a lei n° 9.433, de 8 de janeiro de 1997, institui A Política Nacional de Recursos Hídricos e cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recurso Hídricos, que, ao contrário do nosso vizinho, garante claramente já em seu artigo primeiro:
Art. 1º A Política Nacional de Recursos Hídricos baseia-se nos seguintes fundamentos:
I – a água é um bem de domínio público;
II – a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico;
III – em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais;
IV – a gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas
Hoje, principalmente às vésperas da eleição, debates como o eterno antagonismo entre o “agro” e o “eco” surgem cada vez mais acaloradas. Contudo, a discussão entre os “nacionalistas” e “entreguistas” não é nada atual, e muito se engana o leitor em imaginar que data simplesmente da campanha getulista do “Petróleo é Nosso”. Ainda no período colonial, muitos criticavam a forma como Portugal administrava a sua mais rica colônia.
Ao contrário das colônias de Castela, em que universidades eram prontamente instaladas para formar as futuras elites coloniais, no Brasil, a chamada “Política de Segredo” proibiu não só instituições de ensino, como também qualquer forma de imprensa. O intuito não era, necessariamente, lesar a colônia, mas impedir que quaisquer informações a respeito da riquíssima colônia fugissem do rígido controle metropolitano. Ainda, contemporâneos criticavam a postura meramente “extrativista” da metrópole que não aplicava na colônia nem uma mínima fração das riquezas daqui tiradas. A situação só começou a mudar um pouco com a descoberta do ouro nas Minas Gerais e com o fim do sistema de capitanias hereditárias, quando a metrópole viu que para aumentar os seus lucros coloniais, investimentos em infraestrutura, por exemplo, eram fundamentais.
Hoje o debate simplesmente se refinou. Ainda discutimos até que ponto devemos explorar os recursos do nosso país para gerar riquezas, e, se não a forma centenária de exportação de gêneros agrícolas e minério, o que devemos fazer? Industrialização? Continuar investindo no que sempre fizemos, mas de forma mais tecnológica? Infinitas são as possibilidades. De paraíso fiscal a exportador de tecnologia verde, o Brasil é um país riquíssimo.
Não me entendam mal. Não quero simplesmente ecoar o discurso tão velho quanto o tempo de que somos uma nação rica pelo que produzimos, mas sim uma nação rica pelo nosso povo. Outras nações vizinhas como a Argentina ou o Chile, guardadas as devidas proporções, possuem um potencial muito semelhante ao nosso, contudo, ao observar o que o nosso povo construiu, podemos observar que a riqueza do nosso país não está restrita apenas à abundância dos nossos recursos naturais, mas sim, e creio eu principalmente, em nosso povo.
Outrora escrevi sobre a importância do Estatuto da Criança e do Adolescente, um dos primeiros títulos do gênero no mundo; a partir do que trouxe hoje pude observar, e espero que o leitor também o tenha observado, que A Política Nacional De Recursos Hídricos que garante que a água seja um recurso disponível a todos é um título que nos garante direitos que, aos nossos olhos são intrínsecos à nossa cidadania, o que o caso chileno mostrou não ser verdade.
Assim, posso dizer sem pudores que o debate que devemos observar nessas eleições, e mais que debates, propostas, são as que giram em torno de nossos direitos não simplesmente de nossas riquezas. As riquezas as temos como são, as teremos em quaisquer situações que venhamos enfrentar. Desde 1925 estamos entre os 15 países mais ricos do mundo, creio que constar nesta lista há quase um século pode nos dar algum conforto em discutir para além de riquezas. Nesse século 21, ainda mais depois de quatro anos de total ingerência política atrelados a uma crise sanitária e econômica, discutir apenas riquezas é um luxo ao qual não podemos nos permitir. Hoje devemos assegurar os direitos que temos e, cada vez mais, angariar novos direitos.
Façamos dessas eleições um palanque não para aqueles que se candidatam ao executivo e legislativo, mas para nossas vozes que não devem deixar de serem ouvidas ao exigirem cada vez mais direitos, cada vez mais liberdade e, principalmente, dignidade para o nosso povo.