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João Pessoa

Asas que voam

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Pelas frestas da janela, essas lembranças invadem o quarto sombrio daquele tempo escorrido nas noites do passado. Uma vez, recordo bem, reservara a mim hora de solidão. Apenas a porta fechada do banheiro deixava entrar por debaixo réstia de luz acesa, quase deixando entrever o vazio do ambiente. Piso de madeira. Rede armada.

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Estante a cobrir parede lateral. Birô com máquina de escrever em cima. E no rés do chão a eletrola que, no escuro amortecido, tocava o disco de Gal Costa dos anos 70. London, London. Hotel das Estrelas. Deixa Sangrar. Você Não Entende Nada.

Astral cheio de intenso fastio generalizado. Encontro comigo mesmo. Anos de chumbo no País. Vazio descomunal a rolar por dentro e em torno de mim. Todas as pontes destruídas. Atmosfera brilhante de feras no cio armadas de agressivo abandono. Eu ali foragido, à espera dos dias porvindouros. Notas musicais rolando no espaço, refeitas nuvens de fumaça espiralada. Estranhas, expostas na angústia enjoativa dos versos circulares das canções.

Marcas de ferro, na lâmina da pele desse pretérito que invadiu as entranhas dos idos futuros. A sensação das certezas de trilhos abertos nos passos adiante. Minutos eternos. Pássaros insistentes, contínuos véus ao vento.

Pouco persistiu do instante exato, no calendário. Persistiram, no entanto, as emoções de invasão, no desencanto assinalado – extremos limites territoriais de transformar lembranças em fiapos de sobrevivência que me escorriam da ponta dos dedos da alma ao chão do quarto atemporal comigo deitado enquanto os outros, lá fora, dormiam a sono solto.

Deixei rolar mais um e mais o mesmo disco a fio. Nenhuma pergunta além do que acontecia na música. Cabeça entregue a si. Olhos queimados da véspera. Saturação do desgaste nas mesas dos clubes e bares. Buscas inúteis de não sei o que. Forte pancada no peito, formas gasta de investigar a realidade corrosiva das notícias, portos rotineiros, blocos compactados e chamas apagadas.

Assim, voltar no tempo à música daquela noite antiga. Ouvir Gal Costa e o disco de 1970. Sinais da geração. Amplas cicatrizes, folhas secas que percorriam as veias, os ouvidos, rasgos finos, canais e pistões em surdina. Moléculas. Sabores de fígado que voltavam ao paladar. Atabaques. Pandeiros. Tambores. Totens dominantes, somas de pedaços, provas do delito de sonhar que imperava no repasto conservado no transitório.

A saudade rediviva nas doces esperanças. Ninguém pensar em volver para dizer a história, cúmplices da ausência de depois. E os discos retornam ao firmamento aluminado, quais discos voadores, no cumprimento de missão adrede combinada em reinos siderais do infinito.

Pingos nos iii suaves espumas, vou me procurar na Lapa, quarta-feira de manhã. Toques de senhas misteriosas, que repetem as entradas de cena e alimentam enigmas de outras ocasiões semelhantes, noutros palcos.

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