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O último dos males

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O mundo grego que conhecemos a partir dos clássicos, é um mundo que se inicia com o fim de outro. Inicialmente o mundo era regido pelas forças dos titãs, entre eles Cronos, o Tempo, e Gaia, a Terra, os quais geram Zeus e todos os seus irmãos. A própria Hera, Afrodite, Hades e Poseidon, e tanto outros que viriam a subjugar o poder prévio. Só a partir desse “Golpe de Estado” poderíamos escrever durante uma vida, contudo, hoje eu quero me dedicar a um tema um pouco mais específico.

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Conta o mito, ao menos de acordo com Hesíodo, que após uma desavença entre Prometeu, um Titã, e Zeus, o comandante do Olimpo resolve se vingar do subjugado poderoso através de seus protegidos: nós, a humanidade. Zeus nos tira o trigo e o fogo, o que faz com que Prometeu se esgueire até as forjas de Hefesto, o Deus Ferreiro, responsável pela manufatura olímpica, e rouba uma brasa, a qual presenteia aos humanos, nos dando, assim, de volta aquilo que nos faz tão diferente dos outros animais, fisicamente, mais fortes que nós. Este mito, por si só famosíssimo.

Dois detalhes que são, normalmente, esquecidos ou ignorados, o primeiro que, quando se passa essa história, a humanidade era apenas isso: a humanidade. Não havia distinção entre indivíduos, homens ou mulheres, éramos todos seres assexuados, que vivíamos vidas longuíssimas. Não nascíamos nem morríamos propriamente, um dia, após séculos de existência, apenas íamos dormir e não acordávamos mais. Outro fato fundamental para a compreensão cósmica e mitológica é que vivíamos sem precisar nos preocupar com a velhice ou a morte prematura, não era sequer necessário o dispêndio de tempo com a labuta do plantio e da colheita. Tudo nos era dado, e a vida seguia um curso manso. Enfim, uns dizem a era de ouro da humanidade, outros dizem ser o período mais enfadonho da mesma.

O fato é que, como punição por Prometeu nos ter reestabelecido o fogo, Zeus convoca os outros deuses e os instrui para que criem o castigo mais perverso possível. A Hefesto cabe juntar argila com água e criar uma jovem com a voz e a força dos mortais, doce e adorável com o rosto semelhante ao das deusas; a Atena, que entre outras coisas era hábil tecelã, foi encarregada a vestimenta da moça que deveria ser a mais bela e elegante, as Três Graças e Peito (a persuasão) a cingiram com belos colares de ouro, e que as Horas (as estações) a coroaram com as mais belas flores primaveris; a Afrodite, a toda poderosa deusa do amor, foi encarregada a tarefa de fazer a jovem cheia de charme e do cruel desejo que deixa as pernas bambas; Hermes, o deus com as mãos mais leves e a língua mais afiada, a equipou com a capacidade de mentir e enganar. Assim foi feita Pandora, a primeira mulher.

Seu nome, em si, já pode ser ponto de ferrenho debate, Pandora seria junção de duas palavras Pan (todos) + Dora (Dádivas ou presentes). Mas seria ela a que recebera todos os presentes ou aquela que seria responsável por dá-los à humanidade? Bem, veremos.
Prometeu vivia com seu irmão, Epimeteu, a quem avisara sobre a possível vingança vinda do Olimpo, contudo como em toda boa história, Epimeteu esquece dos conselhos do irmão no momento em que Hermes chega a sua porta com aquele presente incomparavelmente belo, feito à perfeição pelos deuses. A partir daquele momento, Epimeteu e Pandora vivem como o primeiro casal, com ela, o mundo não era mais uma massa uniforme de iguais. Existiam todos os outros, e Pandora. O que diz muito, aliás, sobre nós. Precisamos do outro como uma referência a respeito do que somos e do que não somos. Pandora traz à humanidade a individualidade.

 

Para que nos encaminhemos ao desfecho do mito, mais uma vez Hermes, o mensageiro do Olimpo, bate à porta de Epimeteu e traz consigo um vaso (outras vezes traduzido como caixa), selado com cera e que é recomendado que não se abra sob hipótese alguma. A velha história que já conhecemos e que tanto se repete, desde a árvore do conhecimento e seu fruto proibido na bíblia hebraica até os contos de fadas com Barba Azul. Obviamente que o vaso é aberto e dali saem em uma revoada todos os males que o mundo e humanidade, até então, não conheciam: a velhice, a doença, a inveja, a cobiça, a maldade, o medo, a calvície, a celulite… tudo, exceto a esperança, que Pandora ainda foi capaz de manter dentro do jarro.

Agora, o que a esperança estava fazendo com todos esses males? Alguns podem dizer que a esperança, ao contrário do que imaginamos, é, na verdade, um grande mal. A esperança no futuro faz com que deixemos de desfrutar o presente. Será? Particularmente, acredito que, como tudo na vida, também nesse mito, prestamos atenção às coisas erradas. Pandora foi aquela que abriu o jarro que continha todos os males, mas também, sua criação foi, ao meu ver, um belíssimo tiro que saiu pela culatra. Ao tentar punir a humanidade, nos foi dada a individualidade; ao nos dar a doença, pudemos ter a possibilidade de ficarmos felizes com a saúde; Pandora nos legou duas das maiores dádivas dada a nós, reles mortais, a curiosidade e a escuridão, sem a qual seríamos incapazes de vermos a luz. Não à toa, a única coisa que os deuses olímpicos sempre invejaram nos mortais foi exatamente isso, a nossa mortalidade. A nossa capacidade de vivermos uma vida plena por sabermos do seu fim. Aproveitarmos todos os prazeres que nos são dados pois sabemos que os males são inevitáveis.

Agora que o ponto ao qual me apego para fiar meus pensamentos no artigo desta semana está posto, começo aqui a minha tecelagem. Outro dia li que cientistas descobriram que ratinhos que possuíam esperança tinham mais capacidade de sobreviverem aos testes que lhes eram impostos. Como os cientistas sabem que ratos tem esperança ou que testes foram feitos com os pobres roedores, eu prefiro ignorar.

Mas é inegável que a esperança faz parte, integralmente, da nossa vida, principalmente da nossa felicidade.

A própria economia se baseia na expectativa, ou esperança se assim preferirem. Com a economia global indo, como um Fiat 147 sem freio, ladeira abaixo, tudo que nos falta atualmente é esperança, e nada pior para a economia do que a falta de expectativas no futuro. Se vemos o futuro com olhos incertos, não gastamos, investimos o que temos em bens tradicionais e com pouco risco de desvalorização. As tão famosas, e especuladas, criptomoedas, hoje têm o seu valor em queda livre, enquanto outros ativos, como o próprio ouro, vêm ganhando valor.

A falta de expectativa faz com que sejamos conservadores e a economia global tende ao que os economistas chamam de uma “estagflação”, uma mistura funesta de estagnação econômica somada a uma inflação cada vez mais crescente. Sem a esperança, não se investe, logo a economia não cresce, empregos não são gerados e a riqueza para de circular, concomitantemente, o dinheiro, que passa a ser guardado no colchão, pela simples lei da oferta e demanda, passa cada vez mais a valer menos.

A economia global está entrando em uma espécie de sono, por medo e falta de esperança. Não sem motivos, como se Zeus estivesse nos punindo por um ato de Prometeu, o fogo, a energia, está nos sendo tirada e o trigo também está sendo cada vez mais escasso. Com a guerra na Ucrânia, a expectativa de desabastecimento de energia, seja na forma de gás natural ou petróleo, bem como a escassez de alimentos não é mera conjectura, é fato quase consumado. Muitos países europeus não sabem como enfrentarão o inverno vindouro.

O Banco Central dos Estados Unidos, como forma de mitigar os efeitos da inflação no país, vem aumentando as taxas de juros como não era visto desde os choques do petróleo na década de 1970. Aumenta-se os juros, empréstimos e financiamentos deixam de ser concedidos por desinteresse dos consumidores, consome-se menos, aumenta-se a quantidade de mercadoria no mercado, o preço dessa mercadoria cai e, consequentemente, o poder de compra do dinheiro aumenta e se resolve o problema da inflação. Isso na teoria.

Na prática, o aumento das taxas de juros nos Estados Unidos pauta o mesmo movimento mundo afora. E sabe o que também diminui com a dificuldade de crédito e aumento de juros? O investimento. Assim, o consumo cai, empregos deixam de ser gerados, a pobreza aumenta, e, como se não bastasse, temos uma guerra que força meio mundo a uma escassez dos bens mais fundamentais: energia e alimento. Além de queda, coice. Então, o remédio e veneno são exatamente a mesma coisa dependendo da forma de aplicação. O cenário ideal para nós, nesse momento, seria a abundância de mercadorias, que faria com que seus preços baixassem, aliada a um aumento no investimento que geraria riqueza e aumentaria o consumo fazendo a roda econômica global econômica girar. Contudo o que temos é exatamente o oposto. Escassez de mercadorias e investimentos cada vez mais tímidos.

O Brasil, inconteste produtor de energia e alimento, poderia estar desfrutando, como tantas outras vezes fez, do caos internacional para se beneficiar. Contudo, o presente de Pandora tem seus efeitos em terras tropicais. Com um governo que parece se implodir em seus últimos delírios e estertores, os investimentos que, naturalmente, seriam destinados a nós, estão se dirigindo a outros países. Para que investir na compra de alimentos do Brasil se posso apenas comprar títulos do Tesouro Americano e lucrar mais com isso?

Até a própria Venezuela que até outro dia parecia ser um buraco negro na América, que sugava sua população para um rodamoinho de escassez, corrupção e pobreza, está parecendo se reestabelecer. O governo aumentou a cotação do dólar em relação à moeda nacional, o Bolívar, com a intenção de diminuir a circulação da moeda americana no país e reestabelecer a moeda nacional como moeda forte e corrente. O que aconteceu na Venezuela desde 2013 não é diferente do que ocorre no mundo hoje. Com a falta de esperança no governo local e em suas políticas econômicas (de forma alguma sem motivos), a população se voltou para a moeda americana como ativo mais estável e confiável, processo que agora está tentando-se reverter.

A efetividade das medidas do governo de Nicolás Maduro é amplamente discutida, contudo, pela primeira vez em anos, o povo do nosso vizinho do norte está sentindo esperança, a emigração está diminuindo e muitos refugiados estão voltando ao seu país. A esperança, talvez, faça com que percamos o foco no presente e nos esforcemos em ver, no futuro, algo melhor. A economia pode ser o único âmbito humano em que as profecias são “auto realizáveis”, se diz-se que tal medida é confiável, ela se torna confiável, portanto, efetiva. A esperança pode ser apenas um mal a que nos apegamos quando não temos mais nada, contudo é inegável que precisamos dela cada vez mais e mais.

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