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O cearense que engarrafava brumas

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Na música popular são muito comuns as parcerias na elaboração de canções. Nas composições feitas por mais de um autor as contribuições dos parceiros se dão de diversas formas, mas, em alguns casos, o nome de um dos compositores se destaca tanto que acaba ofuscando a participação dos outros, o que faz com que a autoria da canção seja creditada unicamente a um deles. No Brasil, os exemplos mais representativos dessa situação – o “desaparecimento” do nome de um dos autores nos créditos das músicas que foram feitas em parceria – são os casos de Vadico, Newton Mendonça e Humberto Teixeira.

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“Conversa de Botequim”, “Feitiço da Vila”, “Pra que mentir” e “Feitio de Oração” estão entre os sambas mais cultuados e conhecidos do compositor Noel Rosa, ao ponto de serem facilmente identificados apenas pelas suas melodias. Ocorre que Noel fez apenas as letras dessas músicas. As melodias e as harmonias dessas canções foram criadas pelo pianista, maestro e orquestrador paulista Vadico (Osvaldo Gogliano), que, raramente, é citado como um dos autores dessas canções. O grande compositor que o Brasil esqueceu | Ambiente de Leitura Carlos Romero ,“Desafinado”, “Samba de uma nota só” e “Meditação”, são músicas emblemáticas do movimento da bossa nova e, normalmente, associadas, exclusivamente, ao nome de Antônio Carlos Jobim. Alguns acrescentam Newton Mendonça como sendo coautor das canções, como o letrista das músicas. Tom Jobim, em depoimentos, sempre declarou que nas suas parcerias com o pianista Newton Mendonça, seu amigo de infância, não se pode identificar quem fez letra ou música, tal a afinidade que existia entre eles. Newton Mendonça morreu, em 1960, aos 33 anos, sem ouvir as músicas que ele compôs com Tom Jobim serem interpretadas pelos mais destacados artistas do mundo. A parceria de Newton Mendonça com Tom Jobim em canções magistrais (além das já citadas, “Caminhos Cruzados”, “Foi a noite”. ‘Só saudade”, “Discussão” e outras) é, quase sempre, sonegada.

O compositor cearense Humberto Teixeira vem tendo a mesma sorte de Vadico e Newton Mendonça. Na maioria das vezes em que se faz menção à música “Asa Branca”, que ele compôs em parceria com o pernambucano Luiz Gonzaga, seu nome como um dos autores nem sempre é destacado. A mesma coisa ocorre com outros clássicos do cancioneiro nordestino que eles fizeram juntos, como “Qui nem jiló”, “Juazeiro”, “Assum preto”, “No meu pé de serra”, “Respeita Januário”, “Paraíba”, “Baião” e tantos outros produtos da admirável parceria.

Em “Asa Branca”, Humberto Teixeira mostrou toda a sua habilidade em amoldar as palavras do linguajar sertanejo a um tema que havia sido recolhido por Luiz Gonzaga nos sertões nordestinos: “Quando o verde dos teus óio / Se espaiá na prantação”. Mas, um fato que quase nunca é realçado quando se aborda a excepcional parceria que os dois constituíram é que Humberto Teixeira era músico com formação teórica (sabia ler partituras) e que chegou a ter certo destaque como compositor mesmo antes de conhecer Luiz Gonzaga.

Nascido, em 1915, em Iguatu, no sul do Ceará, Humberto Teixeira ainda criança iniciou o seu aprendizado de música com um tio que era maestro. Aos 13 anos, fez sua primeira composição e, ainda no tempo do cinema mudo, tocava flauta em um grupo responsável pela parte sonora em um cinema em Fortaleza. No início da década de 1930, Humberto Teixeira se mudou para o Rio de Janeiro para estudar Medicina. Cursou dois anos e, depois, se transferiu para o curso de Direito.

Em janeiro de 1934, o compositor cearense ficou em quinto lugar em um concurso de marchinhas para o carnaval promovido por uma revista carioca. Uma nota publicada, na ocasião, no semanário “O Malho” previa que ele teria um futuro promissor na música: “a nós não causará surpresa a sua vitória de um modo definitivo dentro em breve”. Humberto Teixeira tinha, naquele momento, apenas 18 anos. Por essa época, Luiz Gonzaga ainda nem chegara ao Rio de Janeiro. Era corneteiro em um Batalhão do Exército em São João del-Rei.

Em 1944, já como acadêmico de Direito, Humberto Teixeira teve a sua primeira música gravada, “Sinfonia do Café”, que foi incluída em um espetáculo que foi apresentado nos Teatros Municipais do Rio de Janeiro e São Paulo. A gravação teve a participação de um coral regido por Lucília Villa Lobos e arranjo do maestro Lyrio Panicali. Por essa época, Humberto Teixeira conseguiu o seu maior êxito como compositor na fase que antecedeu ao seu encontro com Luiz Gonzaga: o samba “Deus me Perdoe”, composto em parceria com o seu cunhado, o também cearense Lauro Maia. O samba “Deus me Perdoe” foi gravado originalmente por Ciro Monteiro e teve registros feitos pelas cantoras Elizeth Cardoso, Nara Leão e, um antológico, por Marília Medalha.


Em 1945, Humberto Teixeira, conforme um longo depoimento que ele deu ao pesquisador cearense Nirez (Miguel Ângelo de Azevedo), foi procurado por Luiz Gonzaga no seu escritório de advocacia:

“Se apresentou, eu o conhecia de nome e tal, mas foi a primeira vez que eu vi o Luiz pessoalmente […] Aí falou da ideia dele de deflagrar a música do norte nos grandes centros […] nós ficamos de quatro e meia até quase meia-noite, nesse primeiro encontro […] relembramos, retrospectamos em torno dos ritmos nordestinos, do Ceará, de Pernambuco […]

Naquele dia nós chegamos a duas conclusões muito interessantes. Uma delas era que a música ou o ritmo que iria servir de lastro para nossa campanha de lançamento da música do norte, a música nordestina no sul seria o baião […] E outra coisa, naquele mesmo dia nós fizemos os primeiros versos, discutimos as primeiras ideias em torno de Asa Branca”

No ano seguinte, gravado pelo conjunto vocal “Quatro Ases e um Curinga”, surgia “Baião”, o primeiro produto da admirável parceria de Luiz Gonzaga com Humberto Teixeira. Surgia, naquele momento, para a cultura de massa do país aquela que, para o historiador Durval Muniz de Albuquerque no seu livro “A Invenção do Nordeste e Outras Artes”, “será a ‘música do Nordeste’, por ser a primeira que fala e canta em nome desta região”.

Com o extraordinário sucesso do baião, inclusive no exterior, Humberto Teixeira tornou-se uma figura muita conhecida em todo o país. Como era advogado e bom orador, foi incentivado a entrar na política. Foi eleito deputado federal pelo Ceará e pautou a sua atuação parlamentar pela defesa da música brasileira, tornando-se um dos maiores defensores de uma legislação de proteção ao direito autoral.

Luiz Gonzaga sempre reconheceu a importância de Humberto Teixeira nas músicas que fizeram juntos. Em entrevista, dada em 1972 ao jornal “O Globo”, Gonzaga afirmou que “esse povo é muito ingrato com Humberto e esquece que, sem ele, eu não seria nada”. Em 1977, no seu depoimento a Nirez, Humberto Teixeira falou sobre sua parceria com Luiz Gonzaga:

“São tantas e tantas músicas que eu fiz com o Luiz, talvez a ideia maior, o tema da letra ou da música, talvez tenha sido do Luiz, e inúmeras outras são minhas, sozinho. Mas era uma parceria afetiva, fraterna, indestrutível. De maneira que tudo que nós fazíamos era de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. Inclusive, eu nunca me incomodei se o nome dele vinha em primeiro lugar e o meu em segundo. Isso pra mim não tinha a menor importância porque a par disso, eu continuava exercendo a minha profissão de advogado e o Luiz se dedicava inteiramente àquilo.

Muita gente hoje pergunta como é que eu me deixei ofuscar, me ocultar tão inteiramente assim à sombra do prestígio fabuloso que o Luiz granjeou, sobretudo no que diz respeito à autoria […] muita gente diz que eu sou o letrista das músicas de Luiz Gonzaga. Não existe isso. Muitas delas são minhas integralmente. Letra, música e tudo. Como outras são do Luiz. A nossa parceria, eu costumo dizer que não sei onde começa o poeta e onde termina o músico. De maneira que o que foi feito por ele eu considero feito, e vice-versa, a recíproca é absolutamente verdadeira.

Você há de convir comigo que uma parceria que dura 30 anos, sem um desentendimento, sem nunca ter havido uma coisa qualquer… Eu nunca me incomodei muito com esse processo que atinge muito a todo criador de um modo geral, em qualquer manifestação artística. Nem sempre o que cria ou aquele que entra mais intelectualmente ou musicalmente ou o que seja, ou com a letra da coisa, é quem se beneficia do que aquilo pode render junto da massa, junto do público […] Eu nunca me incomodei com isso porque sempre analisei de uma maneira muito fria. O baião, se tivesse sido feito só por mim, o que não foi, fui eu e o Luiz Gonzaga, ele continuaria sendo apenas um negócio inédito, ao passo que com o Luiz ele se tornou esse marco extraordinário dentro da música popular brasileira”

Com a interrupção da parceria com Luiz Gonzaga, motivada apenas por divergências com relação às entidades autorais aos quais eles pertenciam, mas que nunca resvalaram para o aspecto pessoal (os dois permaneceram sempre amigos), Humberto Teixeira alcançou grandes êxitos como compositor, como “Kalu”, “Adeus, Maria Fulô” (parceria com o paraibano Sivuca) e “Orélia”. Mas, aos poucos, Humberto Teixeira foi deixando de compor e se dedicando mais aos assuntos relacionados com o direito autoral. No depoimento dado ao pesquisador Nirez, dois anos antes da sua morte, Humberto Teixeira, contou um sonho que ele tinha:

Vou continuar sonhando lá na minha casa […] Às vezes, de acordo com a irradiação do sol as brumas tomam as cores mais estranhas e maravilhosas. Eu engarrafo brumas. Eu coleciono arco-íris dentro da minha casa. Mas eu tenho um sonho muito maior do que o de Dom Quixote. É um sonho impossível […] é um sonho de um mundo só, uno, indivisível, um mundo sem fronteiras […] sem guerra, um mundo integralmente em paz […] um mundo de um homem só, nem preto, nem amarelo, nem branco. Um homem azul, da cor da luz, da cor do sol”.

Humberto Teixeira morreu de um enfarte, em 1979, no Rio de Janeiro, na casa onde ele “engarrafava brumas”. Tinha 64 anos. A sua filha, a atriz Denise Dumont, produziu, em 2009, o filme “O homem que engarrafava nuvens”, dirigido pelo cineasta Lírio Ferreira. O documentário está disponível no Youtube. Vale a pena ser visto.

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