Joana Serra foi uma figura que marcou minha vida para sempre, apesar de minha pouca idade tudo nela me chamava atenção. Sua vida era tão simplória, tão sem aspiração e tão cheia de felicidade que era incompreensível entender. Depois que li O Pequeno Príncipe vi que o essencial é invisível aos olhos.
Magra, de estatura mediana, cabelos brancos e pixains sempre feitos um cocó preso com um pente, tão mal tratados como sua dona. De pele enrugada e queimada do sol, nariz chato, sua boca não sei precisar a forma, já estava deformada pela idade e a falta de dentes, quando gargalhava, hábito que lhe era constante, pois, ria de tudo, até da sua própria sorte, dentro daquela boca havia um vazio enorme, apenas dois dentes, um canino inferior e um canino superior e desencontrado.
Tinha como profissão aguadeira, ou seja, carregava e abastecia as casas com água, pois, na época não havia canalização em Lavras da Mangabeira, e rezadeira por ofício, sua reza afastava quebranto, mal olhado e espinhela caída. Era rezadeira, embora não tivesse o hábito de frequentar a Igreja, aliás, só ia a Missa quando vovó lhe fazia um vestido novo. Missa para Joana era roupa nova.
Braços finos, mãos longas, magras e muito ágeis, quando pegava os raminhos para rezar batia de leve na nossa cabeça, fazia com eles o sinal da cruz: os primeiros sinais eram nela e depois fazia um sinal na nossa testa, no externo e nos ombros gesticulava tal uma maestrina. Na minha cabeça sua reza era uma bela melodia. Pés esqueléticos, unhas longas e duras, metidos num par de Havaianas já bem desgastadas.
Lembro-me bem do seu vestido de tecido barato, era uma chita estampada e bem colorida, franzido na cintura, chegava à altura do joelho, manga fofa, talvez para esconder a magreza que se via claramente nas suas pernas longas e finas. Era vaidosa, usava um par de argolas grandes nas orelhas, uma corrente no pescoço com um pequeno Crucifixo e um rosário de contas brancas e azul, três ou quatro pulseiras nos braços tudo mareado, mas não importava, ela adorava uma miçanga.
Morava na periferia da cidade, numa casa de taipa com telhado simples, uma porta de entrada e uma janela (a estrutura da casa me fazia lembrar aqueles desenhos que fazíamos na escola), chão de terra batida, dois vãos e um quintal. Acho que o pouco dinheiro não deu para levantar mais que dois compartimentos, sendo o primeiro bem amplo e vazio, nas paredes redes desarmadas, enroladas e presas às cordas que desciam das linhas finas e tortas do telhado que serviam também de armador, aliás, em casas desse tipo tudo tem muitas funções e várias utilidades.
A mobília era minúscula, velha e mal tratada como seus moradores, uma pequena mesa num canto com três tamboretes de madeira, seis tijolos de barro em três séries de dois, e, em cima um pote de barro coberto com um pano branco de algodãozinho ralo, muito limpo e um prato de ágata que fazia peso para que o tecido não voasse, acima e pregada na parede tinha uma tábua com uns dois ou três copos de alumínio tão bem ariados que podia ver nele o rosto, na outra parede uma espécie prateleira de canto com um pente e um caco de espelho enfiado entre a prateleira e a parede.
No segundo vão de tamanho menor, divido por uma meia parede, também de taipa, era o que supunha ser a cozinha, espaço retangular, chão batido, uma espécie de alpendre. No canto do lado esquerdo um fogão a lenha feito com tijolos no chão de modo que acomodasse uma única panela de barro e a lenha que saía das brechas dos tijolos, nas paredes mais três panelas dependuradas e a metade de uma colher de pau para mexer o alimento, metade sim, não que estivesse quebrada estava desgastada pelo tempo. Pratos de ágata, colheres para refeições e copos de alumínio e xícaras de louças brancas, tudo em cima de uma pequena mesa de madeira num outro canto do pequeno vão aberto.
Casada com Antônio Serra, também aguadeiro, eram pais de sete filhos, sendo quatro homens e três mulheres. O que mais me chamava atenção eram os nomes desses filhos, em especial, dos homens, talvez, por achar interessante ou diferente. Eram eles: Firmo, Ascendino, Inocêncio e Cazuzinha; as mulheres chamavam-se Maria, Cícera e Rita. Deles conheci Ascendino e Cazuzinha.
Ascendino, sua mulher Honorina e suas filhas moravam com Joana Serra. Era uma vida muito apertada e de muitas privações. Cada um se virava como podia. Não sei ao certo em que ele trabalhava, sei que bebia muito e gostava de música, a esposa era como todas daquela época cuidavam dos afazeres domésticos, embora, naquela casa se fazia muito pouco, porque se vivia do pouco.
Das filhas lembro-me de Joana D’Arc e Mazinha, essa última, popularmente, chamada de Mata Escura, apelido que ganhou por ter enveredado na prostituição. Hoje entendo que a ela não restou alternativa para ajudar a família, seu corpo era a solução para ganhar alguns trocados, pois, trabalhar de doméstica não recebia salário, o trabalho era em troca de um prato de comida e de roupas usadas, e no final do ano um corte de chita e um par de havaianas. Seria mais uma escrava contemporânea.
Sua filha Rita conheceu um viajante que por ela se engraçou e a levou com ele, nunca mais se ouviu falar dela, e como diz na minha terra: abriu o chão e fechou. Joana nunca recebeu notícias do seu paradeiro. Maria morreu ainda jovem e deixou um filho por nome de Davi, o xodó da avó, trabalhava no Matadouro Municipal, era marchante.
Cazuzinha morava num sítio e como todo agricultor vivia do que plantava e criava. Firmo, foi embora para São Paulo tentar a sorte no Sudeste. Foi outro que não deu mais notícias para a mãe. Anos depois uma neta dele através das redes sociais localizou as primas e entrou em contato com elas; fizeram uma longa viagem a Lavras para conhecer os parentes que ainda restavam. Os tios e a avó já haviam falecidos.
Conheci Joana Serra no ocaso da sua vida, quando a sua profissão deixou de existir e ainda não se aposentava por idade. Naquela época os velhos sem família, ou, sem condições financeiras viviam de esmolas ou continuavam prestando serviços para seus patrões em troca de comida e algum agrado. Era o caso de Joana que se encostou à casa da minha avó. Todos os dias ela chegava bem cedo a tempo de tomar café, depois saía para vender as frutas produzidas no quintal da minha avó e colorau de fabricação caseira.
A imagem daquela senhora magra com uma bacia de alumínio sobre uma rodilha na cabeça a percorrer as ruas da cidade, mercando seus produtos ficou estampada na minha memória de criança curiosa. Retornava antes do meio dia, almoçava, lavava os pratos e arrumava a cozinha. Enquanto a minha avó iniciava sua sesta ela fechava a porta e voltava para sua casa. Brincava quando a gente perguntava: – Já vai Joana? Ela respondia sorridente: – Vou pra casa jantar um pedaço de nada assado. Realmente, era nada mesmo.
Quem viveu em Lavras até a década de 1970 conheceu esses costumes, porque, esse era o nosso modo de viver. Aqui expresso nosso cotidiano simples, de pessoas simples que fez história numa pequena cidade do interior desse imenso Brasil tão grande e tão injusto com o nosso povo. Como disse Fausto Nilo em uma de suas canções, mostrando o retrato da nossa sociedade: Quem é rico mora na praia, mas quem trabalha nem tem onde morar, quem não chora dorme com fome, mas quem tem nome joga prata no ar.
Foto: lata d’agua na cabeça
Cristina Couto nos mergulhou no passado de Lavras da Mangabeira e pintou com o pincel do tempo uma época de que fez parte. Todavia para trazer os fatos pretéritos à ordem do dia só sendo prestadeira de atenção como ela é como ninguém.