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Só a morte fez o Corisco se entregar

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Por: Flavio Ramalho de Brito

  O filme Deus e Diabo na Terra do Sol, do cineasta baiano Glauber Rocha, representa um dos grandes momentos alcançados pelo cinema do Brasil. As sequências da película são intercaladas e sobrepostas por intervenções de um cantador, que não aparece na tela, que solta sua voz, forte e cortante, em versos construídos sobre temas populares do Nordeste brasileiro, com o acompanhamento de um violão, em que se alternam acordes repetitivos. Um exemplo marcante disso é a música chamada Perseguição, que é apresentada nas cenas finais do filme: 

“Se entrega, Corisco! / Eu não me entrego não, / eu não sou passarinho / pra viver lá na prisão!  / Se entrega, Corisco! / Eu não me entrego não, / não me entrego ao tenente, / não me entrego ao capitão, / eu me entrego só na morte, / de parabelo na mão!”

(Clique aqui)https://www.youtube.com/watch?v=V2kX_Ln4ats

Quem fez as músicas de Deus e Diabo na Terra do Sol, cantou os temas e tocou o solitário violão da trilha sonora da película, foi um paulista, filho de libanês, nascido em Marília, chamado João Mansur Lutfi. Durante certo tempo, se apresentou apenas como João Mansur, mas, depois, quando começou a trabalhar como ator em televisão, foi convencido a adotar o nome artístico de Sérgio Ricardo. Conforme o diretor Glauber Rocha escreveu na contracapa do disco com as músicas do filme, a escolha de Sergio Ricardo, para fazer a parte musical da película, deveu-se à sua paixão pelas coisas nordestinas e pelo fato de ele ser, também, cineasta, “sabe que a música de filme é coisa diferente: tem de ser parte da imagem, ter o ritmo da imagem, servir (servindo-se) à imagem”. 

Para o historiador Rafael Rosa Hagemeyer, “o filme de Glauber é uma obra-prima do cinema novo, e a antológica sequência da morte de Corisco não seria a mesma sem a música de Sérgio”. A importância da música de Sergio Ricardo para Deus e o Diabo na Terra do Sol foi revelada pelo próprio Glauber Rocha ao poeta Thiago de Mello, quando ambos estavam no exílio: “Sem a música do Sérgio Ricardo o meu filme não seria a mesma coisa, perderia a força”. 

Em 1964, quando o filme Deus e o Diabo na Terra do Sol foi lançado, Sérgio Ricardo já era um dos principais nomes da cultura do País. Desde criança começara a estudar piano. Ainda rapaz, mudou-se para São Vicente, onde trabalhou numa rádio de um tio. Depois, foi para o Rio de Janeiro, onde completou sua formação musical em conservatório. Tocava, na noite, em boates, em uma delas substituiu um pianista chamado Antônio Carlos Jobim. 

Começou a cantar, compor e incorporou-se à nascente bossa-nova, tendo participado dos dois eventos emblemáticos do movimento, a apresentação realizada, em maio de 1960, em uma faculdade do Rio, que é considerado o seu marco inaugural da bossa-nova, e do show de divulgação internacional da nova música brasileira que aconteceu, em 1962, no Carnegie Hall, em Nova York. Sergio Ricardo gravou três discos, mais ou menos ligados à temática da bossa-nova, mas, no último deles, apresentou uma canção que sinalizava sua dissenção e afastamento do grupo. E é o próprio Sergio Ricardo quem comenta: “Meu samba Zelão foi um dos motivos pelos quais me afastei do grupo da Bossa Nova, porque a música falava de morro, tema que não interessava ao clubinho”. Zelão iniciava uma vertente de canções com crítica social, que foram chamadas “de protesto”, e que teriam em Sergio Ricardo um dos seus principais autores. 

(Clique aqui)https://youtu.be/k9hAo3JmRHc

A influência da música de Sergio Ricardo para os novos compositores que surgiram depois da bossa-nova é expressa por Chico Buarque

“Quando apareceu a bossa nova, eu reneguei o que havia antes. E o Sérgio Ricardo além de fazer parte do movimento, fazia aquelas músicas um pouco modernistas. Músicas sem rima. Eu adorava aquilo. Além disso, ele foi um dos primeiros a começar a fazer músicas de movimento social como ‘Zelão’. ‘Pedro Pedreiro’ tem um pouquinho a ver com isso. Tudo tem a ver com o Sérgio Ricardo nessa minha fase primeira certamente.”

Apesar de já estar firmado, naquela época, como cantor e músico, Sergio Ricardo enveredou, também, por trabalhos em emissoras de televisão, inicialmente como ator de novelas e, depois, escrevendo, fazendo os cenários, a produção e a apresentação de programas. Essa experiência lhe possibilitou o conhecimento necessário para que ele incursionasse em outra atividade artística, a de roteirista e diretor de cinema. Seu primeiro filme, o curta-metragem O Menino de Calça Curta, foi premiado, em 1962, nos Estados Unidos, no Festival de Cinema de São Francisco.

Foi por essa época que Sergio Ricardo conheceu Glauber Rocha, de quem recebeu o convite para musicar o filme Deus e Diabo na Terra do Sol. Sergio também foi encarregado da trilha sonora de Terra em Transe, outro filme de Glauber. Sergio Ricardo continuou dirigindo filmes onde se destacam Esse Mundo É Meu, Juliana do Amor Perdido e A Noite do Espantalho, em que atuaram os pernambucanos, na época desconhecidos, Alceu Valença e Geraldo Azevedo.

Desde o golpe militar de 1964, Sergio Ricardo assumiu uma posição de frontal confronto com o regime ditatorial que se instalara no Brasil. Suas músicas passaram a ser banidas do rádio e da televisão. Em 1967, em um dos festivais de música que então ocorriam no País, um episódio marcou, definitivamente, a imagem contestatória do compositor. Ao apresentar sua música no evento, que narrava a trajetória de um jogador de futebol, explicitamente inspirada em Garrincha, foi impedido, pelas vaias e ruídos da plateia, de mostrar a canção. Inconformado com a situação, Sergio quebrou seu violão, jogou-o para o auditório e se retirou do palco.

Sempre envolvido com iniciativas que possibilitassem a abertura do mercado para novos compositores brasileiros Sergio Ricardo idealizou, em meados da década de 1970, o Disco de Bolso, que era um pequeno disco, acompanhado de um encarte, com apenas duas músicas, uma de um compositor já consagrado e outra de um ainda inédito. O Disco de Bolso era vendido em bancas de revistas, em parceria com o jornal O Pasquim. A primeira edição continha Tom Jobim (com Águas de Março, que ainda não havia sido gravada) e a parceria de João Bosco e Aldir Blanc, ainda inédita. O Disco de Bolso teve mais uma edição, mas o fechamento do Pasquim acabou com o projeto.

No final da década de 1970, Sergio Ricardo passou a morar no morro do Vidigal onde liderou, na época, uma reação dos moradores do local contra a derrubada dos seus barracos para possibilitar a construção de um hotel de luxo na área. Esse episódio inspirou, em 2017, a última incursão de Sergio Ricardo pelo cinema, o curta-metragem Bandeira de Retalhos.  

Sergio Ricardo era um artista múltiplo. Além da televisão e do cinema, fez músicas para o teatro, publicou um livro de poesias e outro para crianças e enveredou, também, pela pintura. 


 Em todas as atividades que desenvolveu Sergio Ricardo sempre teve a preocupação social como o foco principal da sua obra. Nas suas palavras:

“Porque o meu negócio é o meu ser com o meu semelhante […] amanhã quando eu subir no paraíso, eu vou ficar falando daquele mendigo pobre coitado, ninguém deu bola pra ele, coisas assim” 

Sergio Ricardo morreu no último dia 23 de julho. Acometido pela Covid-19, chegou a se curar, mas fragilizado pela doença não conseguiu sobreviver às sequelas deixadas pela pandemia. Tinha 88 anos.

Homenagem a Sergio Ricardo feita por Rolando Boldrin no dia da morte do compositor

Mundo Velho Sem Porteira (Sergio Ricardo)

 

Homenagem a Sergio Ricardo feita por Rolando Boldrin no dia da morte do compositor

Mundo Velho Sem Porteira (Sergio Ricardo) 

 (Clique aqui)https://www.youtube.com/watch?v=2misJwkjAdk

 

 




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3 COMENTÁRIOS

  1. O cangaço, o coronelismo e messianismo moveu e fez história no Nordeste brasileiro. Esse tripé movimentou a política, a economia e criou um jeito autoritário, temeroso e ideológico, permanecendo no poder todo século XIX até metade do século XX. História cruel, triste e muito rica que virou arte. Parabéns Flávio.

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