Porque Hoje é Sabádo

                                 

Por: João Vicente Machado

    Ninguém melhor do que o poetinha Vinicius de Morais para definir o “Sábado”, o sexto dia da criação. Vinicius era um amante da vida , era um amante da noite, era um amante das letras, era um amante da boemia. Ele escreveu belíssimas peças como o Operário em Construção que iremos ver em seguida e eu o imagino provavelmente cansado da noitada, como um bom carioca, olhando pela janela na sexta-feira e  enxergando o sábado  como num anuncio ao mundo, entregando-se com sofreguidão  da forma como gostava.

      Imagino ainda a via sacra da boemia que ele cumpriria  na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, hoje tão maltratada, tão sofrida, mas de posse daquilo que os pulhas da má politica ainda não puderam subtrai-la, por ser agraciada com todos os pendores que a natureza lhe concedeu. Provavelmente em Ipanema no mesmo bar VELOSO, em que compôs “GAROTA DE  IPANEMA”, sentado na calcada ,tomando o seu indefectível uísque em companhia de Tom Jobim e Chico Buarque de Holanda.

Vinicius de Morais com Tom Jobim e outro no bar Veloso RJ

     O site resolveu presentear-lhes com o poema que se segue, da lavra do  poetinha, porque hoje é sábado e ninguém é de ferro.. um  poema é de 1946, com a minha idade cronológica, exatamente no dia em que me encontro no divisor de águas da minha vida profissional, descendo a outra vertente.          

     

  O DIA DA CRIAÇÃO

I


Hoje é sábado, amanhã é domingo 

A vida vem em ondas, como o mar 

Os bondes andam em cima dos trilhos 

E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na Cruz para nos salvar. 


Hoje é sábado, amanhã é domingo 

Não há nada como o tempo para passar 

Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo 

Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo mal. 


Hoje é sábado, amanhã é domingo 

Amanhã não gosta de ver ninguém bem 

Hoje é que é o dia do presente 

O dia é sábado. 


Impossível fugir a essa dura realidade 

Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios 

Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas 

Todos os maridos estão funcionando regularmente 

Todas as mulheres estão atentas 

Porque hoje é sábado. 


II


Neste momento há um casamento 

Porque hoje é sábado. 

Há um divórcio e um violamento 

Porque hoje é sábado. 

Há um homem rico que se mata 

Porque hoje é sábado. 

Há um incesto e uma regata 

Porque hoje é sábado. 

Há um espetáculo de gala 

Porque hoje é sábado. 

Há uma mulher que apanha e cala 

Porque hoje é sábado. 

Há um renovar-se de esperanças 

Porque hoje é sábado. 

Há uma profunda discordância 

Porque hoje é sábado. 

Há um sedutor que tomba morto 

Porque hoje é sábado. 

Há um grande espírito de porco 

Porque hoje é sábado. 

Há uma mulher que vira homem 

Porque hoje é sábado. 

Há criancinhas que não comem 

Porque hoje é sábado. 

Há um piquenique de políticos 

Porque hoje é sábado. 

Há um grande acréscimo de sífilis 

Porque hoje é sábado. 

Há um ariano e uma mulata 

Porque hoje é sábado. 

Há uma tensão inusitada 

Porque hoje é sábado. 

Há adolescências seminuas 

Porque hoje é sábado. 

Há um vampiro pelas ruas 

Porque hoje é sábado. 

Há um grande aumento no consumo 

Porque hoje é sábado. 

Há um noivo louco de ciúmes 

Porque hoje é sábado. 

Há um garden-party na cadeia 

Porque hoje é sábado. 

Há uma impassível lua cheia 

Porque hoje é sábado. 

Há damas de todas as classes 

Porque hoje é sábado. 

Umas difíceis, outras fáceis 

Porque hoje é sábado. 

Há um beber e um dar sem conta 

Porque hoje é sábado.

 

Há uma infeliz que vai de tonta 

Porque hoje é sábado. 

Há um padre passeando à paisana 

Porque hoje é sábado. 

Há um frenesi de dar banana 

Porque hoje é sábado. 

Há a sensação angustiante 

Porque hoje é sábado. 

De uma mulher dentro de um homem 

Porque hoje é sábado. 

Há a comemoração fantástica 

Porque hoje é sábado. 

Da primeira cirurgia plástica 

Porque hoje é sábado. 

E dando os trâmites por findos 

Porque hoje é sábado. 

Há a perspectiva do domingo 

Porque hoje é sábado. 

III


Por todas essas razões deverias ter sido riscado do Livro das Origens, ó Sexto Dia da Criação. 

De fato, depois da Ouverture do Fiat e da divisão de luzes e trevas 

E depois, da separação das águas, e depois, da fecundação da terra 

E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra 

Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado. 

Na verdade, o homem não era necessário 

Nem tu, mulher, ser vegetal, dona do abismo, que queres como as plantas, imovelmente e nunca saciada

Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão. 

Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias 

Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa 

Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos 

Seríamos talvez pólos infinitamente pequenos de partículas cósmicas em queda invisível na terra. 

Não viveríamos da degola dos animais e da asfixia dos peixes 

Não seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão nosso de cada dia 

Não sofreríamos males de amor nem desejaríamos a mulher do próximo 

Não teríamos escola, serviço militar, casamento civil, imposto sobre a renda e missa de sétimo dia, 

Seria a indizível beleza e harmonia do plano verde das terras e das águas em núpcias 

A paz e o poder maior das plantas e dos astros em colóquio 

A pureza maior do instinto dos peixes, das aves e dos animais em cópula. 

Ao revés, precisamos ser lógicos, freqüentemente dogmáticos 

Precisamos encarar o problema das colocações morais e estéticas 

Ser sociais, cultivar hábitos, rir sem vontade e até praticar amor sem vontade 

Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no Sexto Dia e sim no Sétimo 

E para não ficar com as vastas mãos abanando 

Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança 

Possivelmente, isto é, muito provavelmente 

Porque era sábado.


Foto:https://www.google.com.b

        https://www.canva.com/

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