O Novo Pecado Capital: Um Bolo de Chocolate

Por: Antonio Henrique Couras;

Vivemos uma nova religião. Ela não tem santos, nem templos com vitrais coloridos. Seus dogmas não estão inscritos em pergaminhos sagrados, mas em posts motivacionais, apps de academia e nas entrelinhas de cada conversa sobre “disciplina”. Sua penitência é silenciosa, mascarada de autocuidado. E sua culpa, constante. Estamos falando da religião do bem-estar.

Nela, o corpo é o templo, sim, mas também é a cruz. Não se busca exatamente a saúde, mas a performatividade da saúde. É preciso mostrar que se malha, que se come bem, que se dorme cedo, que se medita. A virtude não está em ser, mas em parecer. Não basta estar saudável, é preciso parecer saudável, e de preferência, com boa luz e ângulo.

 Essa lógica não é nova. Desde os tempos antigos, corpos já foram disciplinados por valores sociais e espirituais. Na Idade Média, o corpo era visto como fonte de tentação, algo a ser domado pela fé. Jejuar, mortificar a carne, renunciar aos prazeres era virtude. Hoje, apenas mudamos o nome dos rituais: jejum intermitente, detox, restrição de glúten. Ainda há o sacrifício, mas agora em nome da longevidade, da produtividade e do lifestyle.

E como toda religião, essa também tem seus pecados. Comer um bolo de chocolate à tarde não é apenas uma escolha: é um deslize moral. Subir de elevador e não pela escada é preguiça. Colocar açúcar no café é quase um ato de heresia. Comer pão branco? Blasfêmia. Não fazer cardio três vezes por semana? Apostasia. E para cada um desses pecados, há uma penitência: o “tá pago” na academia, os passos compensatórios no app de caminhada, a confissão em tom de piada nas redes sociais (“Hoje pequei, comi pizza”). Mal sabem, isso se chama anorexia. A eterna busca por “compensar” o que se come. As beatas de hoje usam roupa de academia.

A linguagem, inclusive, denuncia: estamos sempre em débito. “Preciso compensar”, “foi só hoje”, “segunda eu recomeço”, “saí da dieta, mas amanhã volto”. O corpo virou um extrato bancário. Cada garfada fora do script precisa de justificativa, e cada deslize exige punição. A reeducação alimentar virou quase um confessionário onde se diz o que comeu, o que não deveria ter comido, e o que promete fazer depois. Estamos em uma idade média em que o corpo gordo não é só mais uma denúncia do pecado da gula, mas do pecado da preguiça. A diferença é que os templos não cheiram mais a incenso, mas a suor, os cânticos deram lugar à musica animada e os sacerdotes usam conjuntinhos de poliéster e tênis.

E o pior: não basta mais fazer, é preciso registrar. Porque não se trata apenas de cuidar do corpo, mas de performar santidade diante da comunidade. Uma santidade fitness, disciplinada, produtiva. Quem não posta, não malha. Quem não compartilha a salada, não está se cuidando. As redes sociais se tornaram o púlpito onde os fiéis se provam dignos do reino da saúde.

No renascimento os banqueiros financiavam as grandes obras da igreja para serem perdoados do pecado da usura, hoje o pecado é a gordura e todos nós precisamos ser penitentes.

Essa nova moral não é imposta por uma instituição central, mas por um sistema difuso de influenciadores, algoritmos e narrativas. É uma liturgia que se impõe sem padres, mas com personal trainers e nutricionistas convertidos em oráculos. Uma moralidade que não se mede em virtudes espirituais, mas em porcentagens de gordura, gramas de proteína, horas de sono. E pior: é uma fé solitária. Cada um por si e seu espelho. Não há confissão comunitária, mas comparações diárias entre corpos, metas, superações e fracassos.

Mesmo as práticas ditas “holísticas” são incorporadas a esse sistema. Meditação não é mais silêncio interior, é mais um marcador de produtividade emocional. Yoga não é mais busca de equilíbrio, mas alongamento eficiente para melhorar performance. Até o sono virou item de controle e eficiência, com aplicativos que monitoram quantas horas você dormiu, a qualidade do seu REM, e se você acordou de madrugada. Dormir mal vira, novamente, falha. Mais um pecado.

E não é que não se deva buscar saúde, bem-estar, equilíbrio. Mas é urgente perceber quando o cuidado vira condenação. Quando o prazer vira desvio. Quando viver é um eterno pedir desculpas por existir fora da média. Quando se começa a achar que um corpo comum, com dobras, cansaços e desejos, é um corpo errado.

Essa culpa se infiltra em tudo. Um sorvete com os filhos vira dilema. Uma tarde no sofá vira vergonha. A ideia de lazer sem “função metabólica” se torna ofensiva. E o que sobra é uma vida vigiada, onde o hedonismo mais simples, um pão com manteiga, uma tarde sem alarme, um café adoçado, precisa ser justificado.

Talvez, um dia, olhem para este nosso tempo e o reconheçam como uma era de novos dogmas. Em que ser saudável era menos importante do que parecer controlado. Em que a alegria genuína era suspeita, se não fosse magra, produtiva e instagramável. Uma época em que sorrir com a boca cheia de brigadeiro era mais escandaloso do que postar antes e depois de dieta.

No fim, somos todos fiéis de um culto silencioso, vestindo leggings como quem veste batina. Pagando nossas penitências na esteira, buscando absolvição com suco verde. E carregando, no fundo dos olhos, a culpa de quem subiu de elevador. O pecado do prazer. O crime do descanso. O escândalo da gula.

Talvez seja hora de uma reforma. Uma ruptura com essa moralidade disfarçada de saúde. Uma teologia do corpo comum, do prazer partilhado, do descanso sem culpa. Um novo evangelho que aceite corpos como são, e não como devem ser mostrados. Que celebre o bolo de chocolate, não como desvio, mas como rito.

Porque, neste novo credo, o corpo nunca é suficiente. A alma, então, nem se fala. E talvez seja ela, a alma, que mais esteja morrendo de fome.

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