Por: Antonio Henrique Coura,
Tenho andado mais relapso que o normal com o jardim. Nada grave, só o correr dos dias. As horas escapam pelas frestas dos compromissos, das mensagens não respondidas, dos prazos que me atropelam. Há semanas que não aparo o gramado. O tempo chuvoso tem sido um convite aberto às ervas daninhas, que aceitaram sem cerimônia.
Tomaram conta do verde como se fossem donas antigas e esquecidas da terra. Cresceram desajeitadas, empoladas, refestelando-se na umidade com uma alegria quase insolente.
No começo, fiquei irritado. Há um certo tipo de ordem que a gente espera do jardim. Grama curta, linhas bem marcadas, flores que obedecem à estética e não à vontade do vento. Só que o jardim não é um quadro, ele vive. E, ao viver, faz escolhas próprias.
Foi então que, num fim de tarde, ao sair com a alma cansada do dia, eu vi. Entre as ervas altas, entre os galhos que desafiaram a tesoura e os tufos rebeldes, havia cor. Pequenas flores, delicadas, em tons que variavam do azul celeste ao amarelo vivo. Não sei seus nomes mas ali estavam, como sussurros que brotaram quando ninguém estava olhando. E sobre elas, pairavam borboletas.
Duas primeiro, depois cinco, depois tantas que parecia que as flores que voavam.
Haviam brancas que tremeluziam feito reflexos na água. Outras laranjas, com manchas negras nas asas que pareciam pequenos tigres alados. Planavam de flor em flor com aquela leveza que não pertence ao mundo dos homens. Era como se a própria tarde tivesse suspirado — e do suspiro nascessem asas.
Ali, parado no meio do campo que sempre imaginei como um gramado, percebi: meu jardim, com sua cara meio abandonada, estava virando uma pradaria. Não aquela idealizada, de campo aparado e flores plantadas com régua. Mas uma pradaria de verdade. Selvagem. Livre. Linda.
Pensei em como a gente vive tentando conter a natureza nos jardins, nas casas, em nós mesmos. Cortamos, apararmos, domamos. Mas, às vezes, é no descuido que a beleza encontra espaço. No abandono que a vida se acomoda com mais liberdade. Talvez as borboletas só tenham vindo porque, por fim, lhes deixei um lar.
E aí me dei conta de outra coisa: elas nunca viveram aqui. Passavam como transeuntes apressados na rua, mas nunca como moradoras. Não por estarem ausentes, percebi, mas porque meus olhos estavam tão ocupados em seguir em frente, tão apressados em conquistar o próximo objetivo, que esquecem de olhar ao redor. De notar o voo. De escutar o zumbido das asas. Esquecemos das borboletas.
Quem dera nossa vida fosse mais jardim do que fábrica. Quem dera nossa rotina tivesse mais doçura e menos martelo. Quem dera soubéssemos, ou lembrássemos — que a beleza não está só no que planejamos. Às vezes, ela floresce no erro. No mato. No tempo que não cuidamos.
A relva do meu jardim, agora mais alta que o tornozelo, se tornou tapete para essa dança aérea. E eu fiquei ali, quieto, feito um convidado em festa alheia. As borboletas não me temiam. Passavam perto, pousavam por um segundo, depois sumiam em piruetas suaves. O tempo ficou lento. E tudo isso era bom.
Desde então, tenho voltado ao jardim com mais frequência. Não para podar, capinar ou impor ordem. Mas para observar. Venho aprendendo a ver a beleza nessa desordem intocada. Deixo espaço. Deixo liberdade.
No fundo, acho que é isso que a gente precisa, tanto quanto as flores ou o sol. Espaço para sermos. Para brotarmos sem molde. Para errarmos o caminho e descobrirmos um ninho de cor escondido no mato. Para lembrarmos que a vida é mais feita de asas do que de cercas.
Meu jardim ainda tem cara de desleixo, aos olhos apressados. Mas agora, sei o que ele é: um santuário. Uma clareira onde o tempo desacelera, onde a natureza faz sua própria arte, onde a simplicidade dança ao vento com asas finas. Um lugar onde as borboletas voltaram. Ou talvez nunca tivessem ido embora. Fui eu que deixei de olhar.