Passaram-me a perna

Por: Antonio Henrique Couras;

Acredito que a esta altura dos tempos, o leitor já deva estar tão familiarizado quanto eu com o meu jardim. Contudo, devo admitir que, tirando boa parte das árvores, o pobre coitado anda especialmente combalido, sem um desenho apropriado, os canteiros estão sofridos, precisando de um urgente replante, adubação…

As sombrinhas chinesas estão mais parecendo vassouras chinesas que qualquer outra coisa, precisando urgentemente de um desbaste nas folhas secas. Os canteiros de íris ou estão exageradamente populados ou mais ralos do que deveriam. As amarílis que foram devoradas por lagartas mais cedo no ano não floresceram (mas também não morreram), o que me lembra que tenho que colocar ovos falsos espetados em pauzinhos espalhados pelo canteiro para espantar as borboletas que colocam seus ovos nessas plantas (reza a lenda que funciona porque as borboletas e mariposas associam os ovos espalhados nos canteiros como ovos dos seus predadores naturais)

As moreias estão demasiado entouceiradas precisando ser arrancadas, divididas e replantadas, as dracenas vermelhas precisam de uma poda drástica, adubação e um replante para que os canteiros fiquem menos carecas. O pobre gramado nem vou falar.

Apesar de ele ir bem em certas áreas apesar da falta de irrigação no verão, em outras está mais para uma coletânea de ervas daninhas entremeadas de grama.

O outrora frondoso canteiro de helicônias papagaio hoje está ressequido e comido de lesmas. Preciso fazer uma poda total, adubar e caprichar na irrigação. Ao menos sei que este é recuperável.

Frase; Autor desconhecido

Contudo, acredito que temos que comemorar as pequenas vitórias. Consegui fazer as roseiras florirem e pararem de serem devoradas pelas formigas, mas ainda estão parecendo mais uma série de galhos amarelados enfiados na terra do que propriamente roseiras.

Também, a pitombeira nos presenteou com uma floração das mais perfumadas, o ipê branco se encheu de incontáveis flores, até a castanheira do Maranhão que parecia semimorta sem nenhuma folha, do dia para a noite se encheu de brotos e cresceu 40 centímetros!

Aqui poderia começar a arrematar o artigo falando de como a natureza sempre nos mostra que nem tudo está perdido ou como quando menos se espera algo fantástico acontece (o que farei, mas não ainda).

Lembro-me de uma cena do filme Lisbela e o Prisioneiro em que o matador Frederico Evandro oferece uma morte como agradecimento por Leléu ter salvo sua vida. Ao que o protagonista nega e o matador segue dizendo “se eu fosse rendeira lhe oferecia uma peça de bico”. Cada um dá o que pode de acordo com o seu ofício.

Assim, como também não sou rendeira, busco trabalhos que se adequem com meu ofício. No caso, ressuscitei meu ofício de tradutor e buscando uma renda. É verdade que não me falta o essencial, mas o que é a vida sem o supérfluo? E como não é salutar podermos nos dedicar a pensar no fim do mundo ao invés de pensarmos apenas no fim do mês.

Frase; Autor desconhecido

Ofereci meus serviços em um site de empregos e logo fui contratado para uma tradução. O serviço era muito, mas o pagamento era bom e me daria paz por uns seis meses. Virei noite, tomei pílulas de cafeína suficientes para enfartar um elefante, mas entreguei o trabalho a tempo. Trabalho entregue, empregador satisfeito, vamos ao pagamento: depósito feito em um serviço de pagamento online e logo solicitei a transferência do valor para minha conta bancária.

Aguardei, aguardei… nada do dinheiro surgir. O suporte entra em contato falando que precisava depositar 200 dólares para que o meu pagamento fosse liberado. O que claramente não fiz, além de não ter um tostão furado também não acredito em nada nem ninguém que me peça dinheiro.

Aí foi só ladeira abaixo, o suporte do “banco”, o responsável financeiro e o diretor que me contrataram se desesperaram e começaram a me ameaçar. Inicialmente dizendo que eu não receberia nada caso não pagasse e eu dizendo que não pagaria caso não recebesse.

Depois o diretor da “empresa” me ameaçou dizendo que tinha todos os meus dados, e eu pensando cá comigo: “é pleno 2024, qualquer pessoa disposta a pagar consegue comprar meus dados legalmente de incontáveis empresas”, mas só disse que se ele realmente tivesse meus dados saberia que eu sou advogado e que o que ele estava cometendo era uma série de crimes facilmente rastreáveis e puníveis pelas autoridades (ele não precisava saber que eu não tenho OAB nem faço a menor ideia se a polícia brasileira poderia fazer alguma coisa nesse caso). Mas aprendi que uma das inúmeras utilidades de ter frequentado os corredores do curso de direito por 5 anos é poder intimidar as pessoas com essa cartada e agora também sei que ela funciona em diversas línguas e contextos.

Frase; Autor desconhecido

Quando vi que tinham passado a perna em mim fiz um lanche e fui dormir. Vida que segue. Não perdi nada além do meu tempo. Já minha mãe e minha irmã perderam o sono, se preocuparam. Sentiram mais do que eu a visita da esperança e a sua despedida. Mas foi uma daquelas experiências importantíssimas na minha vida. Quando se tira a corda do pescoço você passa a ser capaz de pensar em algo além da mera sobrevivência. E eu pensei que com o dinheiro que receberia poderia adubar as minhas plantas, refazer os canteiros, enfim, resolver, facilmente, todas as questões que iniciei essa crônica descrevendo.

Pensei apenas em como tornar a minha vida mais fácil. Percebi que não mudaria nada na vida que tenho hoje. Continuaria trilhando o mesmo caminho profissional que hoje trilho, e quando vi que não receberia o dinheiro, percebi que sou feliz com a vida que tenho e com as escolhas que fiz.

E aqui deixo para o leitor essa reflexão: imagine qual é o seu maior problema hoje, agora tire-o de sua vida. O que você faria? Não se preocupando mais com os pormenores da sua vida cotidiana, você está vivendo uma vida que lhe faz feliz?

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