Por: Antonio Henrique Couras;
Nos últimos dias venho pondo em dia as notícias acumuladas das últimas semanas, atrasadas por conta de uma doença que me deixou à beira da morte (um resfriado simples). Foi nesse apanhado de atualidades que me deparei com a notícia do falecimento de José “Pepe” Mujica, ex-presidente do Uruguai. Entre homenagens e análises políticas, uma anedota sobre sua vida me prendeu como poucas coisas têm prendido ultimamente.
Durante os anos de chumbo no Cone Sul, Mujica foi preso, torturado, humilhado. Passou mais de uma década confinado em celas úmidas, isolado, sem acesso a água potável, luz do sol, ou mesmo um lugar decente para fazer suas necessidades. Sua prisão foi um mergulho no que há de mais cruel na alma humana, e também, de algum modo, no que há de mais resistente.
Depois de muito tempo em condições desumanas, o Estado, como que num gesto de benevolência tardia, lhe concedeu um penico. Sim, um penico. Para alguém que não tinha onde se aliviar, aquele objeto humilde se transformou em símbolo de dignidade recuperada. Ele o recebeu como quem recebe um prêmio. E foi com esse espírito que, ao saber que a ditadura havia caído e que sua libertação se aproximava, Mujica encheu seu penico de terra e plantou nele sementes de flores. Cuidou delas. E quando, enfim, atravessou os portões da prisão, saiu magro, abatido, quase irreconhecível, mas carregava consigo um penico florido, talvez o símbolo mais singelo e eloquente de sua resistência.
Essa imagem apesar de pitoresca fez todo sentido para mim. Um homem que fora tratado como menos que um animal, atravessando o mundo de volta com um vaso improvisado em mãos. É uma dessas pequenas grandes cenas que definem uma vida. Não houve revanche. Não houve raiva. Apenas flores. Uma declaração silenciosa de que nenhuma cela é mais forte que uma semente.
Mujica seguiu sua trajetória sem jamais abandonar essa lógica. Como presidente, recusou regalias, abriu mão de salário, morou em sua chácara com uma velha cadela e um Fusca azul. Tornou-se uma espécie de sábio latino-americano, desses que respondem com poesia onde outros dariam murros na mesa. Não romantizou a pobreza, tampouco usou sua simplicidade como palanque. Era apenas coerente consigo mesmo.
É curioso observar como, em tempos de vaidades políticas, de redes sociais carregadas de filtros e discursos vazios, Mujica representava o oposto absoluto. Quando ele falava, parecia que o mundo precisava desacelerar para ouvi-lo. Era um tipo de pausa necessária, um intervalo de lucidez. Não porque ele tivesse todas as respostas, mas porque se permitia ser humano em público, um gesto raro entre líderes.
Contava histórias com humor, refletia com calma, dava entrevistas de chinelo. Não fazia cerimônia. E isso, para muitos, soava como heresia. Como pode um chefe de Estado não querer um palácio? Não desejar poder? Não se deslumbrar com a liturgia do cargo? Mujica incomodava porque desafiava o imaginário do poder. Porque lembrava que governar não é mandar, é servir.
Talvez seja por isso que sua figura atravessou fronteiras com tanta força. Não apenas por sua biografia singular, mas por tudo que ela representava: resistência, coerência, ternura. Mujica era um lembrete incômodo de que é possível fazer política sem cinismo. E de que a grandeza, às vezes, mora nos gestos pequenos, como carregar flores em um penico.
Aquela anedota sobre a prisão é, na verdade, uma metáfora viva sobre o que ele acreditava. O penico, antes símbolo de humilhação, vira canteiro. O cárcere, antes deserto de humanidade, se torna jardim. A flor, frágil e teimosa, cresce onde ninguém esperava. Não há ideologia mais poderosa que essa: a crença de que até mesmo os lugares mais inóspitos podem gerar beleza.
E que contraste com a lógica de nossos tempos. Hoje, em que o ódio é política e a desinformação é método, um homem como Mujica parece uma ficção. Mas ele existiu. Viveu. Governou. E morreu com a mesma simplicidade com que viveu. Pediu que suas cinzas fossem enterradas debaixo de uma sequoia em sua propriedade rural, ao lado de sua inseparável cadelinha Manuela. Não há tumba em mármore, nem mausoléu. Há terra, sombra e memória.
Ali, naquele terreno onde antes se cultivavam hortaliças e agora repousa um dos homens mais íntegros do nosso tempo, floresçam não apenas plantas, mas ideias. Que o solo onde descansa Mujica inspire novos caminhos. Que seu penico florido continue brotando mesmo na ausência do jardineiro.
Num mundo acostumado à pompa e à pressa, Mujica nos lembra que o essencial caminha devagar. Que a esperança não faz discursos, mas cultiva gestos. Que resistir não é gritar mais alto, mas continuar de pé mesmo quando tudo nos diz para desistir.
Nem toda grandeza cabe em palácios. Às vezes ela floresce num penico de ferro, sob a luz teimosa da esperança.