Por: Antonio Henrique Couras ;
Muito antes dos registros escritos, antes da palavra moldar as civilizações, havia apenas o som do vento entre as pedras, o estalo das fogueiras à noite e os olhos atentos dos primeiros habitantes da América do Sul. Na imensidão árida que hoje chamamos de sertão do Piauí, homens e mulheres da pré-história moldavam o cotidiano com os elementos à disposição: caçavam, colhiam frutos, fabricavam ferramentas de pedra e observavam o céu com a mesma reverência que temos por deuses. Suas vidas, embora duras, eram plenas de sentido. Celebravam nascimentos, rituais de passagem, colheitas e mortes com gestos, símbolos e arte.
Essas expressões sobrevivem nas pinturas rupestres da Serra da Capivara. Dezenas de milhares de desenhos gravados nas paredes de pedra contam histórias de caçadas, danças, cerimônias e até partos. Os traços vibram com vida. Há movimento nas figuras, há emoção nos gestos. Essas imagens não são meramente registros gráficos: são as primeiras narrativas do continente. E por muito tempo, elas dormiram esquecidas sob o sol escaldante do Piauí.
Até que, nos anos 1970, uma mulher chegou para ouvi-las.

Niède Guidon nasceu em Jaú, interior de São Paulo, em 1933. Desde muito jovem demonstrava interesse pela natureza e pelos mistérios do passado. Estudou História Natural na Universidade de São Paulo (USP), e, posteriormente, arqueologia na prestigiada Sorbonne, em Paris. Durante a ditadura militar no Brasil, foi impedida de lecionar em universidades públicas, o que a levou a continuar sua carreira no exterior. Trabalhou no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), uma das mais respeitadas instituições científicas da França, e foi graças a essa trajetória internacional que teve acesso a financiamento e apoio técnico para explorar o potencial arqueológico brasileiro.
Seu interesse pela Serra da Capivara foi despertado quando teve acesso a registros e relatos vindos da região de Lagoa Santa e, mais tarde, do Piauí. Fotografias e observações de campo indicavam a existência de pinturas rupestres ainda inexploradas. Curiosa e determinada, organizou uma expedição para confirmar com os próprios olhos o que os papéis ainda não podiam provar. A partir desse momento, nasceu não apenas uma pesquisa, mas uma missão de vida. Niede Guidon pisou naquelas terras pela primeira vez como quem entra em um santuário. Ela havia ouvido falar da Serra da Capivara por meio de relatos esparsos de caçadores, moradores e pesquisadores locais, e ao analisar fotos e documentos, sentiu que precisava ver com os próprios olhos. E, ao deparar-se com a vastidão e complexidade das pinturas, entendeu que havia algo ali que mudaria tudo o que se sabia sobre o povoamento das Américas. Com a paciência de quem sabe ouvir o silêncio, Niede iniciou um trabalho que duraria décadas.
Cada fragmento escavado, cada camada de sedimento analisada, levava-a mais fundo no tempo. E quanto mais escavava, mais distante ficava a ideia aceita pela academia de que os primeiros humanos chegaram à América do Sul apenas há 12 mil anos. Em vez disso, Niede encontrava indícios de ocupação humana com mais de 50 mil anos. Ferramentas de pedra, fogueiras fossilizadas, cinzas preservadas, ossadas. A ciência, ao seu redor, resistia. Mas ela não recuava. Não estava ali para agradar, mas para descobrir. Não para validar o que já se sabia, mas para expandir o que ainda se podia imaginar.

Foi em meio a essa missão que Niede começou a construir não só uma teoria, mas um território. O Parque Nacional da Serra da Capivara nasceu da necessidade de proteger não apenas um sítio arqueológico, mas todo um ecossistema cultural, histórico e humano. E como tudo no sertão, nada veio fácil. Ela enfrentou burocracia, falta de verba, ceticismo, e até sabotagens políticas. Mesmo assim, persistiu. Fundou um museu, um centro de pesquisa, formou equipes, capacitou moradores da região, criou escolas. E, assim, formou também uma comunidade em torno da ciência.
Não era raro vê-la andando pelo parque com seu chapéu, gesticulando com vigor, explicando com paixão cada descoberta. Niede era exigente, intensa, apaixonada e, ao mesmo tempo, extremamente humana. Contam que tomava café com os funcionários do parque como se fossem velhos amigos. Que chorava ao ver pichações nas pinturas rupestres. Que fazia questão de ir pessoalmente às escolas da região, falar com as crianças sobre os povos antigos. Ela acreditava, profundamente, que a arqueologia podia transformar realidades.
E transformou. Sua atuação na Serra da Capivara fez com que o mundo olhasse para o Brasil com outros olhos. Colocou o sertão piauiense nas principais revistas científicas do mundo. Foi reconhecida internacionalmente, aplaudida por universidades e instituições. E, como acontece com muitos brasileiros que brilham, foi mais celebrada lá fora do que aqui dentro. Mas isso nunca a deteve.

Quando, já idosa, anunciou que se afastaria da gestão do parque, não foi por cansaço. Foi um gesto de lucidez. “O Brasil precisa assumir seu patrimônio”, disse. E com isso lançou sobre todos nós uma responsabilidade que até hoje teimamos em não aceitar por completo: cuidar da memória, do passado, daquilo que nos forma antes mesmo de nascermos.
Hoje, o nome de Niede Guidon ecoa como símbolo de resistência intelectual, de dedicação inabalável, de amor profundo por uma verdade ancestral. Seu legado está nas pedras, nas pinturas, nas crianças que visitam o museu e descobrem que o sertão guarda muito mais que a seca. Está na certeza de que a arqueologia brasileira é uma joia — e que pode iluminar o mundo.
Cabe a nós, agora, manter essa luz acesa. Cabe a nós lutar pelo financiamento da ciência, pela valorização dos museus, pelo respeito às nossas origens. Niede nos mostrou o caminho com a coragem dos que sabem que o tempo não apaga tudo. Algumas histórias resistem. Outras, precisam ser desenterradas. E todas, precisam ser contadas.
Porque o Brasil não começou em 1500. Começou muito antes. E só conhecendo o que fomos, seremos capazes de escolher, com sabedoria, o que ainda podemos ser.