Os Castelos Estão de Volta

Por: Antonio Henrique Couras;

Há dias em que acordo com a impressão de que vivemos dentro de um romance distópico ruim, desses mal escritos, onde tudo parece exagerado demais para ser crível. Onde bilionários fazem piadas em foguetes enquanto o chão arde em chamas. Onde, no auge de uma crise climática que nos ameaça a cada estação, a resposta dos poderosos é perfurar mais poços de petróleo. Perfurem, dizem. Como se o que estivesse em falta fosse o combustível, e não o juízo.

Esses dias, li que Trump de volta ao palco com seu teatro de bravatas e slogans inflamáveis prometeu reaquecer a indústria do petróleo americano. Fazer a América perfurar de novo, como se o planeta fosse uma casca de ovo cheia de ouro líquido, e não uma criatura viva prestes a desmaiar de febre. É a política externa do escapismo, do poder surdo, da negação como bandeira. E não é só ele. São muitos. São demais.

A verdade é que os castelos estão de volta. Não os de pedra, mas de vidro e aço, blindados e automatizados. Não têm torres, mas andares infinitos, escritórios com vista para a miséria. Ali dentro, os ricos vivem outro tempo. Outro clima. Outra realidade. Têm ar-condicionado, comida orgânica, água filtrada por cinco camadas de tecnologia. E enquanto discutem como transformar Marte em lar, o mundo aqui embaixo vai ficando cada vez mais inabitável.

Estamos divididos — não mais entre esquerda e direita, entre civilizações ou religiões. A nova divisão é entre os que podem escapar e os que vão arder. Entre quem vai assistir ao colapso com uma taça de vinho francês, e quem vai correr da enchente com o que couber nos braços. É cruel dizer isso, mas é mais cruel fingir que não está acontecendo.

Nunca se falou tanto em ESG, em responsabilidade, em sustentabilidade. Mas as emissões sobem. Os recordes de calor são quebrados como pratos em briga de casal. A Amazônia vira pasto, os corais viram escombros. E no alto, nas salas refrigeradas dos fóruns econômicos, eles seguem debatendo “crescimento”. Como se crescer fosse ainda possível num corpo doente. Como se a Terra ainda pudesse dar mais, quando já nos implora menos.

E talvez o mais assustador de tudo seja o quanto isso se naturalizou. O absurdo já não choca — só cansa. O presidente de uma das maiores potências do mundo pode prometer ignorar acordos climáticos, pode dizer que vai proteger sua indústria mesmo que o planeta grite, e haverá aplausos. Há sempre quem aplauda o fim do mundo, desde que seja lucrativo.

Enquanto isso, aqui embaixo, nós suamos. Literalmente. O ar está mais denso, as chuvas mais furiosas, os incêndios mais constantes. Os rios secam. As cidades costeiras afundam. O asfalto derrete. E tudo o que recebemos são discursos mornos e metas para 2050, quando muitos de nós já nem estaremos aqui — ou desejaremos não estar.

 

Vivemos em uma distopia em que os guardiões do futuro estão mais preocupados com seus lucros trimestrais do que com o amanhã das crianças. Em que a prioridade é garantir energia barata para os que têm piscina climatizada, e não água potável para quem atravessa a seca.

O trumpismo e seus espelhos espalhados pelo globo é apenas a caricatura mais grotesca dessa lógica. Mas não é o único. É só o mais sincero. Ao menos, ele diz com todas as letras que prefere petróleo a floresta. Que prefere lucro a sobrevivência. Os outros, mais elegantes, apenas escondem isso sob promessas com cheiro de marketing.

E nós? Nós seguimos. Plantamos o que dá. Recolhemos a roupa antes da chuva ácida. Cuidamos de jardins, ainda que o solo esteja quente demais. Acreditamos na arte. Conversamos sobre o mundo com esperança teimosa. Amamos, apesar de tudo. Mas também cansamos.

Porque é difícil viver com dignidade quando se sabe que lá em cima, nos palácios invisíveis do poder, ninguém está nos ouvindo. E pior: ninguém quer ouvir. Eles vivem outro romance. Uma ficção futurista de super-ricos salvos por cápsulas de vidro e IA. Enquanto nós, aqui, tentamos apenas respirar.

E ainda assim, há beleza. Há resistência no verde que insiste. Na criança que planta uma árvore. Na senhora que guarda água da chuva. Em quem educa, em quem escreve, em quem sonha. Mesmo que o castelo esteja longe, mesmo que o fogo esteja perto. Há vida. E ela é teimosa.

Talvez, um dia, os castelos desabem — como sempre desabam. E talvez, entre as ruínas, alguém encontre esse tempo e o leia com olhos espantados. “Como deixaram isso acontecer?”, vão perguntar. E talvez a resposta seja simples: estavam ocupados demais perfurando o chão, para perceber que o céu estava caindo.

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