HABEMUS PAPAM

Por:Antonio Henrique Couras;

Vivemos num tempo de paradoxos. Carros autônomos cruzam avenidas enquanto crianças morrem de fome em campos de refugiados. Cirurgias são feitas por robôs enquanto velhos mendigam assistência nas esquinas. A era digital pulsa em cada tela, mas ainda nos falta o básico: dignidade, escuta, compaixão. E, nesse contexto de contrastes, há uma figura que, com aparência medieval: vestes longas, anel dourado, bastão cerimonial continua, surpreendentemente, a exercer influência política, social e geopolítica real: o papa.

Francisco I, eleito em 2013, foi o primeiro pontífice das Américas. Um jesuíta vindo da Argentina, país onde os trilhos da fé se cruzam com as cicatrizes da ditadura e os cantos de resistência das comunidades de base. Sua figura logo despertou atenção mundial. Não pelo luxo do cargo, mas justamente pelo seu desprezo por ele. Preferiu morar na Casa Santa Marta, andar em carros simples, usar sapatos ortopédicos e falar uma linguagem que até mesmo os sem fé compreendem: a da misericórdia.

Um dos atos mais emblemáticos do pontificado de Francisco foi sua atuação como mediador secreto no processo de reaproximação entre Cuba e os Estados Unidos, encerrando um bloqueio diplomático que perdurava desde os anos 60. O Vaticano ofereceu-se como território neutro e confiável para as negociações. As reuniões aconteceram sob sua chancela moral. O resultado? O restabelecimento de relações diplomáticas entre Washington e Havana em dezembro de 2014, anunciado com reconhecimento explícito da participação do papa por Barack Obama e Raúl Castro.

Não se tratava de vaidade diplomática. Francisco compreendia o que aquele embargo significava para o povo cubano. Não era apenas uma sanção política: era a asfixia de um povo inteiro. Intervir ali foi um ato de coragem geopolítica e de compaixão pastoral.

Nos últimos anos de sua vida, Francisco voltou seu olhar pastoral à Ucrânia. Com a guerra em curso desde 2022, ele tornou-se uma das vozes mais persistentes a clamar pela paz. Em audiências, discursos e orações públicas, referia-se à guerra como um “sacrilégio“. Em novembro de 2024, ao completar-se mil dias de conflito, o papa voltou a condenar a violência, expressando sua dor pelas mortes e o deslocamento de milhões.

Ele não enviava tropas, mas cartas. Não impunha sanções, mas pedia orações. Sua força vinha justamente da ausência de poder temporal: falava de coração para coração. E, talvez por isso, sua voz ecoava mais longe que a de muitos chefes de Estado.

Em maio de 2025, após meses de saúde fragilizada, foi anunciado que um dos últimos desejos de Francisco I foi transformar o papamóvel, símbolo máximo da autoridade papal e da pompa vaticana, em uma ambulância para crianças na Faixa de Gaza. Um gesto de beleza extrema e radical simplicidade.

Naquele ato final, Francisco dizia ao mundo que seu papado jamais se tratou de poder, mas de serviço. Transformar um veículo cerimonial em instrumento de resgate era sua forma de lembrar que a Igreja deve estar onde estão os que sofrem.

Em 8 de maio de 2025, a fumaça branca subiu novamente no Vaticano. Foi anunciado o nome de Robert Francis Prevost, americano, agostiniano, nascido em Chicago, com décadas de trabalho pastoral no Peru, como novo papa: Leão XIV. Sua escolha trouxe um misto de surpresa e alívio. O primeiro papa nascido nos Estados Unidos, mas com alma e trajetória latino-americanas.

Leão XIV não demorou a mostrar o tom de seu pontificado. Em sua primeira aparição, ajoelhou-se em silêncio e pediu orações, ecoando o gesto inaugural de Francisco doze anos antes. Em seu primeiro discurso, falou de paz, inclusão e justiça. Fez menção carinhosa à sua antiga diocese de Chiclayo, no Peru, onde conviveu com comunidades indígenas e atuou diretamente na luta por acesso à saúde e educação.

Antes de sua eleição, Prevost era prefeito do Dicastério para os Bispos, cargo ao qual foi nomeado por Francisco em 2023. No Peru, teve forte atuação pastoral e social, dedicando-se à promoção da justiça social e à escuta das comunidades marginalizadas, incluindo povos indígenas. Sua atuação pastoral na América Latina foi marcada pela simplicidade, proximidade com os fiéis e compromisso com a formação pastoral.

Seu trabalho o aproximou dos temas centrais da encíclica Laudato Si’, de Francisco, especialmente no que se refere à ecologia integral e à defesa da dignidade dos pobres. Por essa razão, muitos o veem como um elo coerente entre o legado de seu antecessor e os novos desafios da Igreja.

Leão XIV assume a liderança da Igreja em um momento delicado. Herda um rebanho dividido entre os que querem mudança e os que temem qualquer passo fora do tradicionalismo. Enfrenta um mundo polarizado, uma crise climática acelerada e a contínua perda de relevância institucional da fé na vida das pessoas.

Mas sua história pessoal fala mais alto. Ele conhece a fome com nome. A exclusão com rosto. O sofrimento com endereço. Não é um príncipe da Igreja. É um filho da missão.

Ao contrário dos papas de séculos passados, sua força não reside na pompa, mas na escuta. E se há algo que o mundo mais precisa hoje é de quem saiba escutar, sem julgar, sem dogmatizar, sem impor.

A eleição de um papa com tais raízes periféricas renova a esperança de que a Igreja do século XXI possa, enfim, cumprir o que promete: ser casa para os feridos, refúgio para os rejeitados, farol para os desorientados.

O gesto de Francisco ao doar o papamóvel talvez seja, nesse sentido, um símbolo de transição. De uma Igreja que abandona os cavalos e as armaduras para andar de chinelos ao lado do povo. Como Francisco de Assim o fizera ao renunciar de sua riqueza para pregar o evangelho de Jesus. De uma fé que não se impõe com palavras, mas se oferece com gestos.

Francisco partiu como viveu: amando os pequenos. Leão chega como viveu: vindo dos pequenos. Que esse elo não se rompa.

Que o papado de Leão XIV, como o de seu antecessor, seja consagrado aos que têm fome e sede, de pão, de justiça, de dignidade. Que ele continue denunciando a indiferença global, os abusos do poder e o desprezo pelos mais frágeis.

Que a Igreja, sob sua liderança, seja menos tribunal e mais refúgio. Menos museu e mais hospital. Menos doutrina e mais misericórdia.

Porque mesmo em pleno século XXI, com toda sua tecnologia, o mundo ainda precisa de figuras aparentemente medievais que nos lembrem de uma verdade simples: o amor continua sendo a maior revolução.

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