Por: Antonio Henrique Couras;
Dizem que o batom não mente. Nem a barra da saia. Nem os saltos. Que entre uma passada de gloss e o som do salto ecoando nos corredores dos shoppings desertos, há mais verdade econômica do que nos gráficos e boletins oficiais. São pequenos prazeres, quase banais mas há quem diga que eles pressentem crises antes dos economistas, como animais que se agitam antes do terremoto.
Foi no século XX que essa teoria começou a tomar corpo. No auge da Grande Depressão de 1929, os vestidos das mulheres desceram. Largos, longos, apagados. A moda parecia enlutada junto com a Bolsa de Nova York. Era como se o espírito da época tivesse escorrido pelas bainhas, arrastando-se no asfalto cinzento.
Décadas depois, na explosão de otimismo dos anos 1960, veio a minissaia. E junto dela, o crescimento econômico, o consumo, os Beatles, a corrida espacial. A barra subia conforme subia também o PIB. E a mulher andava com as pernas à mostra, como quem dizia: “A vida está boa.” Chamaram isso de Hemline Index, o índice da bainha e muitos começaram a levar a sério.
Nos anos 2000, veio o índice do batom. Leonard Lauder, presidente da Estée Lauder, percebeu que, em tempos de recessão, as vendas de batons aumentavam. As pessoas cortavam os gastos grandes, mas ainda buscavam pequenos luxos, algo que elevasse o ânimo sem afundar o orçamento. Um batom vermelho custa menos que uma bolsa da Chanel, mas ainda é símbolo de poder, vaidade, presença. Em tempos incertos, ele se torna armadura. E estatística.
O salto alto também já teve seu momento oracular. Quando a economia estremece, ele tende a crescer. Será uma tentativa de se manter acima do chão instável? Um modo de parecer firme quando tudo ameaça desabar? Os sapatos que sustentam o corpo também sustentam, talvez, ilusões de controle.
E aqui estamos nós, no século XXI, outra vez ouvindo os sinais discretos desses mensageiros da elegância. A barra das saias voltou a descer, as cores neutras voltaram às vitrines, os saltos afinam e se alongam, os batons intensos se destacam em rostos cansados. Os dados do último trimestre são menos otimistas. A inflação anda tímida, mas a confiança do consumidor é mais tímida ainda. E lá estão os batons vendendo como nunca. A bainha baixa. O salto alto. O sussurro de que algo vem.
A beleza, afinal, é sempre política. E econômica também. Porque quando o mundo lá fora parece fora de controle, a gente tenta controlar o próprio reflexo. E se o salário não dá para um cruzeiro, ainda dá para um delineador. Se a esperança se retrai, a maquiagem avança. A mulher (e o homem também, por que não?) pinta o rosto como quem se pinta para a guerra.
É curioso pensar que o espelho seja mais honesto que o noticiário. Mas talvez ele seja apenas mais sensível. O espelho sente primeiro. Capta, nas pequenas mudanças do cotidiano, a grande virada do tempo. A decisão de vestir algo mais discreto. A troca do salto agulha por um sapato robusto. O batom mais barato, mas mais vibrante. A bolsa menor. O cabelo preso. A unha feita em casa. Pequenos gestos. Grandes sintomas.
Lá fora, os especialistas discutem recessão técnica, queda no consumo, retração dos serviços. Aqui dentro, a gente escolhe o esmalte nude, refaz o coque, troca o restaurante pela marmita e anda com um andar mais rápido. A moda responde. O corpo responde. O guarda-roupa se ajusta ao bolso, e o desejo se acomoda no que é possível. Não por fraqueza, mas por inteligência.
Porque sobreviver com estilo também é resistência.
É curioso também como os ciclos se repetem. A cada crise, voltamos à busca do essencial. O exagero cede espaço à sobriedade. Os brilhos ofuscam menos; os tecidos ganham tons de terra, de inverno, de espera. A beleza vira uma forma de consolo — ou de rebelião.
E talvez por isso essas “futilidades” mereçam mais respeito. Elas não são vazias. São diários não escritos, barômetros do ânimo coletivo. Enquanto o economista analisa os juros, a costureira observa o corte. O estilista percebe que o vermelho voltou com força. A vendedora nota que as clientes querem algo “bonito, mas em conta”. E ali está o prenúncio da curva descendente do gráfico.
O mercado, no fim, é feito de pessoas. E as pessoas sentem, antes de racionalizar. Gastam menos, vestem diferente, vivem com mais cuidado. Ou com mais ousadia, às vezes — porque há quem reaja à crise com brilho. Com exagero. Com um batom roxo que grita: “Não vou desaparecer.”
E talvez esse seja o grande ensinamento por trás dessas teorias curiosas. Que a vaidade não é só vaidade. Que o salto alto e o batom vermelho são, também, discursos. Que o mundo da beleza carrega sinais de algo muito maior: nossas tentativas, por vezes desesperadas, de manter alguma dignidade no meio da tempestade.
No fim das contas, não é sobre o comprimento da saia. É sobre o comprimento da esperança. E sobre como, mesmo quando tudo parece apertar, a gente encontra um jeito de continuar bonito. Nem que seja só por dentro. Nem que seja só por um instante.