Adeus, Jorge

Por: Antonio Henrique Couras;

No século XIV, em uma Veneza inquieta, cortada por canais e pelas sombras do medo, uma história ecoou como um sussurro incômodo nos corredores do poder: a história de Rolandina Roncaglia. Ela não era nobre, não era rica, mas carregava algo que, à época, era mais perigoso do que qualquer arma: a coragem de ser quem era. Em um mundo onde a verdade era escrita pelos que se sentavam nos tronos e púlpitos, Rolandina ousou existir à sua maneira.

Sua vida, documentada no tocante livro “Processo a Rolandina”, revela-se mais do que um relato jurídico. É um testamento da intolerância, uma memória viva do que acontece quando a fé se converte em espada, e não em bálsamo. A obra resgata, com detalhes frios e brutais, os autos do processo inquisitorial que a condenou à morte, e com eles, a imagem de uma mulher que, mesmo sob o peso do preconceito, ainda encontrou espaço para ser caridosa, para se doar, para oferecer amor. Rolandina era conhecida por ajudar os pobres, por confortar os aflitos, por dividir o pouco que tinha com quem nada possuía. Ainda assim, sua bondade não a salvou.

Era uma vendedora de ovos, que quando sentia a necessidade se prostituía, mas não por dinheiro ou com a ambição de se tornar uma cortesã, mas porque sentia a necessidade de afeto. E esse ofício tão antigo lhe permitia ter o que de outra forma lhe era negado. Em seus braços vários homens puderam ser eles mesmos. Seu crime? Sodomia. Um daqueles crimes baseados em ouvir dizer que usavam uma falsa moralidade para condenar os desafetos dos poderosos.

Condenada, Rolandina foi arrastada à praça pública e entregue às chamas. Sua morte foi lenta, mas não calou sua verdade. O fogo consumiu seu corpo, mas curiosamente, o processo que a condenou é o mesmo que a manteve viva por séculos. Sua história ainda ecoa séculos depois, se repete em cada luta por reconhecimento, em cada rosto que se recusa a se esconder.

Quantas Rolandinas vieram depois dela? Quantas caminharam pelas ruas do mundo, com medo nos olhos e força no peito? Quantas foram mortas, silenciadas, esquecidas, apagadas da história? O tempo passou, as fogueiras deram lugar a formas mais sutis de violência, mas a exclusão persistiu, latente, constante, naturalizada. Até que, em um instante que parecia improvável, um gesto rompeu essa longa noite.

Julgamento de Rolandina, sendo transgênero em Veneza em 1354

Agora no século XXI, e o mundo mergulhava em outra escuridão: a pandemia. As ruas, antes cheias de passos apressados, vozes, carros e os barulhos da vida, agora estavam vazias. O medo generalizado era algo novo, mas viver com medo sempre foi um hábito para quem sempre existiu à margem. E, então, veio um gesto inesperado, um sopro de esperança vindo justamente da instituição que, um dia, negara a humanidade de Rolandina.

O Papa Francisco, Jorge Mario Bergoglio, não se limitou a palavras. Durante aqueles dias incertos, ele fez o que muitos líderes não ousaram: procurou os últimos. Procurou as mulheres trans, as trabalhadoras sexuais, os que sobreviviam nas frestas da sociedade. Não lhes perguntou de onde vinham, nem como viviam. Apenas perguntou: “O que vocês precisam?”. E lhes deu o essencial: alimento, cuidado, respeito e dignidade.

Mas o que mais lhes deu foi algo que nem mesmo as esmolas podiam comprar: respeito. Disse-lhes que eram filhas de Deus, com a mesma veemência com que outros já as tinham condenado. E, naquele momento, elas não se viram mais como sombras ou pecados. Sentiram-se humanas. Amadas.

Entre as incontáveis vozes que choram a partida do sumo pontífice estão as dessas mulheres, migrantes, transexuais, trabalhadoras sexuais… os seres mais marginalizados da sociedade, mas que por ele foram vistas.

Choram porque Jorge, o homem que lhes estendeu a mão, se despede. Seu sorriso cansado, suas palavras simples, sua ternura, já não ecoarão dos balcões do Vaticano. A cátedra de Pedro, por ora, se esvazia de sua presença, e o mundo, tão carente de afetos sinceros, sente sua ausência.

Não é fácil dizer adeus a quem, mesmo de longe, soube tocar corações com tanta delicadeza. Francisco não foi perfeito, e ele mesmo o admitia, mas foi real. Foi humano. E, em sua humanidade, deixou transbordar um amor que rompeu muros erguidos por séculos. Amor que alcançou quem, como Rolandina, jamais soube o que era ser abraçada pela fé.

Hoje, ao lembrarmos de sua partida, não choramos apenas o Papa. Choramos Jorge, o amigo que tantas vezes caminhou em silêncio, levando alívio onde antes havia dor. Choramos o protetor que viu além dos rótulos, que enxergou beleza onde o mundo via erro, que preferiu estar ao lado dos frágeis, mesmo que isso lhe custasse críticas. Jorge não foi um papa de marfim. Foi de carne, osso, e sobretudo, coração.

Francisco rompeu com essa mácula de quase um milênio. Estendeu a mão a essa população. Se é assustador pensar que foram necessários sete séculos para a Igreja corrigir um erro, mais assustador ainda é pensar que ela foi uma das primeiras a fazê-lo. Não sei há quantos séculos ou milênios podemos dizer que nossa sociedade ocidental existe, mas posso dizer que as pessoas trans nunca foram acolhidas nela. Ainda são marginalizadas, violentadas e mortas. Mas pela primeira vez esses pessoas choram a partida de um amigo, que por acaso era o papa.

Adeus, Jorge. Teu legado não se esconde em encíclicas ou catedrais. Ele pulsa nas vidas que tocaste, nas mãos que seguraste, nas almas que resgataste do esquecimento. Que teu descanso seja sereno, como deve ser o fim dos justos. E que, onde quer que estejas, saibas: ainda há Rolandinas neste mundo, mas agora elas sabem que, um dia, foram amadas.

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