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Logo será tarde demais

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Por: Antonio Henrique Couras;

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Surpreendentemente, ainda mais para mim, me vi, recentemente, cercado por um novo grupo de amigos. Ao contrário dos meus velhos amigos, que hoje já desfrutam de suas carreiras, casamentos e filhos, esses novos ecoam mais a minha vida de eterna busca por um lugar no mundo. Quando menos esperei, me encontrei entre pessoas interessadas em política internacional, direitos humanos, e me senti novamente como nos tempos da faculdade. Um pouco do amargor da vida dissipou-se, dando lugar àquela energia jovial de quem tem fé no futuro.

Junto com essa esperança, veio o sentimento de indignação frente às injustiças do mundo, algo que muitos de nós esquecemos de sentir. Com a eleição daquela cajarana azeda como presidente dos EUA e suas iniciativas fascistas/totalitárias, as pessoas que me rodeiam se perguntam: “Como isso pode acontecer?”.

Então, lembro-me de quando, no longínquo ano de 2016, fui apresentado à filósofa alemã Hannah Arendt, mundialmente conhecida por seu conceito de “banalidade do mal”, que descreve como nós, humanos, acabamos nos acostumando com o que deveria ser inaceitável. Ela cita o caso de Adolf Eichmann, um burocrata do regime nazista responsável pela logística dos chamados trens da morte, que transportavam prisioneiros de guerra para campos de concentração e extermínio.

Ali, Hannah Arendt relata como ficou chocada ao perceber que aquele homem, que ela esperava ser um monstro sanguinário, era, na verdade, um simples burocrata, cuja justificativa era sempre a mesma: “Estava apenas cumprindo ordens”.

Em 2017, ano em que me formei, escrevi uma monografia, meu trabalho de conclusão de curso, na qual estudei como os legisladores nazistas elaboravam suas leis de extermínio para uma população inteira com a frieza de quem decide quais sementes serão isentas de impostos no próximo ano fiscal. Com total distanciamento do fato de que suas decisões resultariam na morte de milhões de pessoas, comparei esses legisladores aos nossos, que, àquela altura, aprovavam na Câmara a redução da maioridade penal, e analisei suas possíveis repercussões que atingiriam quase exclusivamente jovens negros. Argumentei que não éramos muito diferentes dos alemães da metade do século passado.

Ao ver os aviões abarrotados de imigrantes sendo expulsos dos EUA, foi impossível não me lembrar dos trens de carga que transportavam milhões de pessoas para a morte.

Nos trens da Alemanha nazista, o embarque era um espetáculo de desespero e crueldade. As pessoas eram arrancadas de suas casas em operações conduzidas por soldados disciplinados. Mulheres, crianças e idosos eram empurrados para vagões de carga como gado. Mark Roseman, em Os Nazistas e a Solução Final, descreve o processo: as vítimas eram reunidas em praças ou pátios de estações, sob o olhar vigilante de guardas armados.

Havia uma seleção inicial — os mais fracos eram descartados imediatamente, enquanto os restantes eram forçados a embarcar. Vagões escuros, apertados e insalubres aguardavam os condenados. Sem água, comida ou ar fresco, cada viagem era uma agonia. No início, os próprios vagões, que percorriam estradas por dias no rigoroso inverno europeu, eram uma máquina de morte. Com o tempo, a logística de eliminação de indesejáveis foi aprimorada.

O paralelo com os aviões de deportação dos Estados Unidos hoje é inevitável. Imigrantes, frequentemente vivendo nos EUA há anos, são arrancados de suas vidas com violência semelhante, ainda que revestida de burocracia moderna. As cenas se desenrolam como em um filme em que passado e presente se entrelaçam: agentes do ICE (Immigration and Customs Enforcement, ou Serviço de Imigração e Alfândega) invadindo casas na calada da noite, arrastando pessoas de pijamas, que mal têm tempo de pegar documentos ou abraçar seus filhos. Os aeroportos tornam-se pátios de embarque modernos; as filas, igualmente silenciosas e carregadas de medo. No entanto, em vez de trens, são aviões que partem, cheios de vidas desfeitas, rumo a um futuro incerto.

Na Alemanha nazista, a seleção era calculada: “esses vivem, esses morrem”. Em Eichmann em Jerusalém, Hannah Arendt descreve como Adolf Eichmann desempenhava um papel essencial nesse processo. Ele não via os rostos nem ouvia os gritos; para ele, tudo era uma questão de logística. Hoje, nos EUA, um sistema igualmente desumanizante opera.

Políticos elaboram leis que tratam imigrantes como estatísticas, enquanto agentes de fronteira e juízes de imigração cumprem ordens sem refletir sobre o impacto humano de suas ações.

Giorgio Agamben argumenta que o “direito penal do inimigo” transforma certos grupos em não-pessoas, desprovidos de direitos básicos. Nos EUA, os imigrantes são criminalizados pela mera existência. Paradoxalmente, seu trabalho sustenta a economia: colhem alimentos, constroem casas, cuidam de crianças. São eles que mantêm a pirâmide etária americana equilibrada, garantindo uma população ativa e produtiva. Mesmo assim, são tratados como inimigos, enquanto uma indústria lucrativa de detenção e deportação cresce em torno de seu sofrimento.

As imagens se sobrepõem: nos trens alemães, gritos abafados e choro contido; nos aviões americanos, o olhar vazio de pais que se despedem de filhos e a resignação de quem carrega tudo o que pode em uma mochila. Ambos os cenários são alimentados por uma sociedade que aceita a normalização da crueldade. Eichmann em Jerusalém nos alerta para o perigo da indiferença: “O horror não está apenas na ação, mas na apatia que a permite.” Nos EUA, a indignação inicial é efêmera. “Ninguém vai fazer nada?” é uma pergunta que ecoa, mas não encontra resposta. O sentimento desaparece tão rapidamente quanto surgiu.

Ao final, resta o gosto amargo da constatação: o que era certo e errado deixou de ser uma questão. A história se repete, não como uma rima, mas como um eco persistente. Torçamos para que os horrores parem nas deportações. Mas, como na Alemanha nazista, quando finalmente perceberem o horror, será tarde demais.

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