Por: Mirtzi Lima Ribeiro;
Assisti com muita atenção ao filme “Ainda Estou Aqui”, baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva, com o mesmo nome.
Alguns tabloides não falaram bem do filme, mas, a crítica e o público já o consagraram. Seu alcance foi tanto, que esta produção de Walter Salles, entrou na pré-lista de Melhor Filme Internacional do Oscar, cuja cerimônia ocorrerá em 2025.
Foi um longa realista, sem apelações e sem efeitos especiais, focado na trajetória de Eunice Paiva, uma mulher que viveu o terrível drama de ver seu marido, um ex-deputado, sair para um suposto “depoimento” e nunca mais voltar, porque foi torturado e assassinado pelo Estado brasileiro na ditadura militar, por motivo fútil. O AI-5 (Ato Institucional número 5), possibilitou esse abuso e ignomínia de poder. Em 1971, Rubens Paiva foi brutalmente torturado nos porões do DOI-Codi, no Rio de Janeiro, cujo corpo ficou até hoje desaparecido.
Não houve intimação nem notificação ou qualquer documento trazido por seus algozes para que ele fosse dar o tal “depoimento”. Ele foi arbitrariamente levado, sem direito a nada, muito menos a advogado.
Dias depois, neste ano de 1971, a própria Eunice e a filha adolescente foram levadas encapuzadas e algemadas, tendo essa mãe passado por forte tortura psicológica por 12 dias em cativeiro com a mesma roupa, sem banho, sem banheiro, sem ter sono adequado, sem alimentação, com depoimentos tomados madrugada adentro, triturada em seu emocional, sem saber onde ela estava nem seu marido, nem sua filha presa no mesmo dia que ela, além dos outros filhos menores que ficaram dentro da casa deles sob a vigilância ostensiva de sujeitos não identificados.
Conforme entrevista dada por Marcelo Rubens Paiva, escritor e filho de Rubens Paiva, ao jornalista Mário Sérgio Conti (que foi ao ar em 20/12/24), seu livro transformado em filme, mostrou o esfacelamento de uma família de classe média alta que de repente se viu diante de um quadro de penúria e massacre.
Enquanto eu assistia ao filme e a cena era de Eunice presa e sob extenuante tortura psicológica, dois jovens que sentavam a pouca distância de mim na mesma fileira, riam numa espécie de deboche, depois saíram da sala de exibição no meio do filme.
Por certo, são dessas criaturas que desprezam os outros ou não possuem a menor noção de empatia e do que foi essa época obscura do país. Na mesma hora supus que talvez, seus pais fossem daqueles que se enrolaram em bandeiras do país frente a quartéis pedindo a volta deste torpor ocorrido entre 1964 e 1985, em que a tortura pesada e o assassinato de pessoas em porões espúrios ocorriam quando taxavam cidadãos comuns como inimigos imaginários do governo imposto, jogando seus cadáveres em lugares ermos, verdadeiros cemitérios ocultos, cujas famílias até hoje não sabem onde foram enterrados seus corpos.
A história narrada no filme resgata as dificuldades diante de um regime totalitário e de como uma mãe se desdobrou para criar sozinha seus cinco filhos, em um luto não oficializado, cujo marido foi barbaramente assassinado, sob condições obscuras, tendo a família ficado vigiada e sem poder ter acesso aos seus próprios bens, já que não havia óbito oficial.
Um óbito que só foi reconhecido oficialmente pelo país 25 anos depois, quando então se possibilitou à família abrir um inventário pela morte do ex-deputado e cidadão brasileiro, de modo a que tivessem acesso aos bens de família.
Uma mulher que sob forte pressão, em um luto doloroso, uma luta incessante para saber sobre o desaparecimento do marido, soube dar direção a seus filhos, retomar estudos, redobrar esforços para seguir adiante, apesar de todo esse torpor.
Graduada aos 45 anos de idade como bacharel em Direito, Eunice Paiva se dedicou aos direitos humanos e se especializou em direito indígena, deixando um legado laboral substancioso.
Afirmou sobre ela em entrevista à CBN, o escritor, líder e ativista indígena, ambientalista, filósofo, poeta, escritor brasileiro da etnia indígena krenaque e um Imortal da Academia Brasileira de Letras, Ailton Krenak: “Eunice é de uma expressão tão grande que é impossível contar a história do movimento indígena nos anos 70 e 80 sem fazer referência à contribuição dela, tanto do ponto de vista jurídico quanto do ponto de vista humanitário.”.
Sim: na época da ditadura militar, a região amazônica foi ostensivamente invadida, tendo ali começado a saga de violência sobre os povos originários, então massacrados, mortos e suas terras invadidas ilegalmente por grileiros e garimpeiros.
“Ainda estou aqui”, demonstrou uma mulher que transformou sua dor em determinação para educar os filhos e realizar um trabalho digno, inclusive sua luta pelos direitos dos indígenas.
O filme é também um alerta sobre o pretenso movimento de pessoas que apoiam golpes de Estado com vistas a colocar no poder gente que defende e usa de tortura ao arrepio de qualquer tipo de escrúpulo, a perseguição e o controle extremo sobre a população através da imposição do medo e do terror. Estes, são contra a cultura, o conhecimento, a pesquisa, a modernidade, a lucidez, às liberdades e à civilidade.
É bom se ter muito cuidado e desenvolver discernimento para essas questões cruciais. Jamais poderíamos desejar um cenário tão dantesco de volta à vida dos cidadãos brasileiros, em nenhum momento.