Por: Cristina Couto;
Embora nas terras caririenses se cultivassem a cana de açúcar e naquele final de século fosse possuidora de inúmeros engenhos de rapadura, a abolição da escravatura não trouxe grandes consequências para a região. A economia predominante era a do pastoril e não exigia numerosos escravos. Os cativos agora libertos continuavam morando e trabalhando nas terras dos seus antigos senhores, depois da abolição eles passaram de ser chamados de criados e deixaram de ser um bem, uma propriedade, mas continuavam trabalhando duro, sem remuneração, sem descanso e os castigos continuaram.
Os senhores de engenho formavam verdadeiros exércitos particulares em defesa da propriedade e da sua segurança pessoal. O famoso “cabra”, um cruzamento de brancos, negros e índio possuíam um temperamento perturbador, raivoso e truculento. Viviam em rivalidade e eram exímios manuseadores de cacete, decidiam tudo na agressão. Eram conhecidos por acabar as feiras das cidades, vilas e povoados, motivo de motes para desafiadores de viola, sendo noticia nos sítios e nas fazendas. Os cantadores populares foram durante séculos o único meio de comunicação do sertão.
Conhecidos pelo temperamento brigão, corajoso e ousado muitos desses cabras acabaram ingressando no Cangaço e outros na polícia, provocando desordem e perturbação. O cabra caceteiro do Ceará ficou famoso pela sua habilidade com as armas, pela audácia e pela perversidade também.
Outro acontecimento que não causou grande impacto em terras caririenses foi a Proclamação da República. Os criminosos agiam impelidos pela desigualdade socioeconômica num lugar de fome e de seca, e sobre a proteção dos coronéis nem se deram conta da mudança na política brasileira.
As propriedades rurais do Cariri eram abarrotadas de moradores que viviam debaixo das ordens do dono da terra de modo servil. Em geral eram maltrapilhos, subnutridos e tratados com inferioridade; sem salário, trabalhavam pela comida e se vestiam com roupas usadas dos patrões, trabalhavam de domingo a domingo, sem direito a folga. No Natal recebiam um corte de chita e um chinelo como agrado pelos serviços prestados. É muito comum se encontrar em antigos documentos esse tipo de tecido nos inventários de antigos fazendeiros que também eram comerciantes. Muitos não tinham nem a liberdade de apanhar frutas das árvores espalhados nos terreiros das casas grandes, eram proibidos de pescar no açude sem autorização prévia. O regime de escravidão continuava.
Os que plantavam tinham que preparar a terra e recebiam do patrão as sementes, os mais organizados guardavam de um ano para outro. Em geral era no sistema de meia, eles tinham todo o trabalho e na colheita ficavam com a metade e a outra metade era do dono da terra, na entressafra, o patrão fornecia alimentos para ser pago na colheita, era comum na casa grande ter um quarto com uma porta que dava para fora, uma espécie de bodega, onde os moradores se forneciam e tudo era anotado em uma caderneta para prestar conta no final da safra. O resultado era sempre favorável ao dono da terra que garantia sua metade, e a outra metade (do morador) descontavam o seu fornecimento ou aquilo que ele comprou do patrão na entressafra, e o pouco que lhe sobrava ele alimentava a família por um breve tempo, e começava tudo outra vez. Acabava se tornando escravo da terra e do senhor. Nesse tempo os sítios não tinham energia elétrica e nem água encanada. A luz era do candeeiro e a água era transportada em latas para encher os potes.
Com a Proclamação da República a elite conservadora ligada aos setores econômicos tratou de assegurar os velhos privilégios dos quais era beneficiária. No sertão a elite agrária dos coronéis fez questão de manter seus domínios locais, opondo-se ao processo da politica centralizada. Em 1894, Prudente de Morais foi eleito presidente da República e o predomínio das oligarquias foi consolidado no mandonismo, no clientelismo e no coronelismo. Como afirma Rui Facó no seu livro Cangaceiros e Fanáticos:
O latifúndio se manteve intacto através da Monarquia e não se modificou com ao advento da República que não tocou num fio de cabelo da grande propriedade territorial. Assim, constituíram as comunas caririenses, nos primeiros anos da República, verdadeiros feudos dos chefes políticos, uns verdadeiros senhores de baraço e cutelo. Nos Municípios criavam-se guardas locais, que os policiavam, compostas de cabras bons, na gíria da época, prontos para cumprir as ordens dos chefes estritamente. (p. 124).
No final do século XIX e começo do século XX, o Cariri cearense era um verdadeiro barril de pólvoras, bandos de facínoras andavam livremente por toda região, em livros e em documentos da Câmara Municipal de Lavras são registrados a frequência dos ataques, são muitos documentos que denunciam e pedem providências as autoridades estaduais a respeito de um Bando da família Viriato que não só invadia as cidades, como incendiava canaviais, atacava o comércio e as residências, era um verdadeiro terror. De Missão Velha/CE a Cajazeiras/PB ninguém estava seguro e nem em paz.
Nos primeiros decênios do século XX, havia uma grande concentração de sertanejos pobres em Juazeiro do Norte em busca de comida para barriga e alento para a alma, eles acabaram encontrando na figura do Padre Cicero Romão Batista um misto de fé e esperança para seus infortúnios. A exploração do trabalhador braçal, as brigas pelas demarcações de terras, as invasões de cangaceiros contra propriedades, vilas e cidade provocaram uma verdadeira guerra civil que se propagou por todo Região do Cariri.
Conhecido como o ciclo das deposições, de 1901 a 1909, foi deposto a bala sete coronéis chefes políticos dos sete principais Municípios do Cariri. Foram eles: Crato, Missão Velha, Barbalha, Lavras, Campos Sales, Aurora e Araripe. Desses Municípios apenas Lavras teve uma diferença dos demais, algo bem peculiar da Família Augusto que não gostava, não aceitava e nem admitia ninguém meter o nariz no seu feudo.
Em 1907, mais precisamente, no dia 26 de novembro, o coronel Gustavo Augusto Lima, apeava do poder seu irmão Honório Correia Lima, com ajuda do coronel Santana de Missão Velha e do coronel Domingos Furtado de Milagres, autorizado por Dona Fideralina Augusto Lima, mãe de Gustavo e Honório. Na minha interpretação esta deposição se deu de forma preventiva, já que Dona Fideralina auxiliara os demais coronéis na tomada do poder dos seus respectivos Municípios, ela preferiu fazer a própria deposição antes que algum aventureiro lançasse mão. Embora a história afirme que tal ato se deu por desobediência de Honório. Defendo a teoria que a Velha Fideralina juntou o útil ao agradável. Como resultado arranjou uma desavença familiar para o resto da vida, mas não perdeu o poder do seu feudo para ninguém.
Foi nesse ambiente hostil, barulhento, intranquilo e cheio de disputas que viviam o povo do Cariri cearense.