Por: Antonio Henrique Couras,
Outrora, neste mesmo espaço discorri longamente sobre como as obras, uma vez publicadas pertencem aos leitores mais do que ao próprio autor ou autora. Contudo, me reservo o direito de mudar de ideia.
Recentemente me deparei com um trecho da peça Nachtland (Terra Noturna) do dramaturgo alemão Marius von Mayenburg, que explora temas sombrios de decadência social, política e familiar, sempre com uma perspectiva crítica sobre o comportamento humano. A obra foca nos conflitos entre as gerações e a hipocrisia das classes sociais dominantes, muitas vezes retratando a degradação, moral e ética, de seus personagens.
A história gira em torno de uma família burguesa que, em meio a um cenário de colapso social e político, revela suas tensões internas e suas fraquezas. Os personagens são retratados com grande complexidade, e suas interações expõem a superficialidade das convenções sociais e a crescente alienação do mundo moderno. Mayenburg utiliza a peça para mostrar como a forma e o poder do discurso podem ser manipulados para controle e opressão, questionando o valor real da palavra quando desvinculada de um conteúdo ético ou moral.
Um dos principais temas da peça é a superficialidade da comunicação em um contexto de poder, em que o “quem fala” se torna mais importante que o “o que é dito”. Fazendo-se, assim, uma crítica ao estado atual da sociedade, em que as aparências e a posição social têm mais peso do que a verdade ou o conteúdo do discurso. A peça aborda a manipulação do discurso, a perda de autenticidade nas interações humanas e as consequências da desvalorização do conteúdo.
Nessa obra me deparei com o diálogo em que dois dos personagens debatem, precisamente, sobre o que é mais importante, o conteúdo ou quem o entrega (e aqui eu peço a licença e a boa vontade com a tradução desse simplório escritor):
-Uma obra de arte só é o que o artista diz. Se não há artista, só há silêncio.
– Não necessariamente, há obras de arte que falam comigo mesmo que eu não saiba quem o artista é. O que importa é o que está sendo dito, não quem o diz.
– Eu te amo.
– De fato.
– Quando eu digo isso, isso provocará um sentimento diferente em você do que quando, digamos, sua esposa o diz.
-Ah, minha esposa.
– Ou Frau Dr. Günter.
-Ah, isso é verdade.
-E quando meu marido diz “eu te amo”, isso também é diferente. O efeito muda de acordo com quem o diz. Não existe afirmação se não há ninguém para dizê-la, não há arte sem o artista.
O que me traz à analise de dois velhos ditados populares diametralmente opostos: “De boas intenções o inferno está cheio” e “O que vale é a intenção”. Qual dos dois é, então, verdadeiro? Acredito que descobriremos primeiro como ir a pé à lua do que conseguir responder tal pergunta.
Como diz Mayenburg, não há arte sem o artista, o que é verdade, mas deveríamos condenar a obra junto com o artista? Se assim o for, meu pintor favorito, Michelangelo da Caravaggio, um dos maiores espontes do barroco italiano, em 1606, se envolveu em uma briga em Roma que resultou na morte de um homem chamado Ranuccio Tomassoni. As circunstâncias exatas do incidente são debatidas pelos historiadores, mas acredita-se que a briga tenha ocorrido durante uma partida de “pallacorda”, um precursor do tênis, ou por razões pessoais e de honra, talvez ligadas à disputa por uma mulher.
Seja qual for o motivo, Caravaggio matou Tomassoni e foi condenado à morte por decapitação. Após o assassinato, Caravaggio fugiu de Roma para escapar da sentença. Ele passou os anos seguintes em uma constante fuga, movendo-se de cidade em cidade e vivendo sob a proteção de poderosos patronos que admiravam seu trabalho, mas também o protegiam das autoridades.
Imediatamente após deixar Roma, Caravaggio se refugiou em Nápoles, onde sua reputação como pintor de renome o precedeu. Durante esse período, ele continuou a produzir obras importantes, como Sete Obras de Misericórdia. Nápoles estava então sob o domínio espanhol, e Caravaggio se sentia relativamente seguro. Em 1607, em busca de uma nova oportunidade e, possivelmente, de um perdão, Caravaggio viajou para Malta, sede dos Cavaleiros de São João (Cavaleiros de Malta). Ele conseguiu a proteção do Grão-Mestre Alof de Wignacourt e foi até nomeado cavaleiro da ordem. Contudo, sua natureza violenta o alcançou novamente, e Caravaggio se envolveu em uma nova briga, atacando um cavaleiro de alto escalão. Isso levou à sua prisão e subsequente fuga da ilha.
Já no ano seguinte, em 1608, fugindo de Malta, Caravaggio passou algum tempo na Sicília, onde continuou a trabalhar em várias cidades, como Siracusa e Messina, criando pinturas marcantes como A Ressurreição de Lázaro e A Adoração dos Pastores. Mesmo com sua vida em constante risco, sua produção artística continuava intensa. Em 1609, após deixar a Sicília, Caravaggio voltou a Nápoles, onde sofreu um ataque violento, possivelmente em retaliação por seus conflitos anteriores. Ele foi gravemente ferido, mas conseguiu sobreviver e ainda produziu algumas de suas últimas obras durante esse período.
Caravaggio passou os últimos meses de sua vida tentando obter um perdão papal para poder voltar a Roma em segurança. Ele enviava pinturas como presentes aos patronos influentes, buscando apaziguar suas culpas. No entanto, em 1610, a caminho de Roma, Caravaggio morreu em circunstâncias misteriosas. Há diversas teorias sobre a causa de sua morte, desde febre até assassinato, mas o que se sabe é que ele morreu em Porto Ercole, uma pequena cidade na costa da Toscana.
Assim, sabendo da conturbada vida do artista, sendo um assassino passional que tentava comprar o perdão papal com suas obras, podemos condená-lo e dizer que suas obras devem ser arremessadas ao esquecimento?
Acredito que a arte e a ciência (não vamos esquecer dos horrores cometidos em prol dessa nova crença) vivem, sim, quase apartadas de seus criadores. E eu gostaria de focar aqui no “quase”. Podemos aproveitar as obras ainda que seus criadores sejam quase monstros, ou mesmo monstros, mas como nas fábulas das mil e uma noites, temos que ter a consciência que nossas ações e desejos vêm sempre com um preço. Nesse caso reconhecer que até as almas mais perturbadas são capazes de grandes atos, e pessoas que julgamos incólumes também são capazes de monstruosidades.
Como qualquer produção humana, sofrendo da mesma natureza que nós, nossas obras são cinzentas, nem pretas nem brancas. Não há o absoluto em se tratando do ser humano. Não há deuses sem os homens, nem homens sem deuses, assim como não há criaturas sem seus criadores, nem os criadores receberiam essa alcunha sem as suas criações.