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Resiliência

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Por: Antonio Henrique Couras;

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Peço, como faço semanalmente, licença ao leitor para eu poder contar um pouco da minha intimidade. Essa semana fui ao oftalmologista. Na verdade, eu fui passar longas horas na sala de espera. A consulta em si durou apenas alguns minutos, já a espera durou mais de cinco horas. Fiz vários exames para acompanhar a evolução de um quadro delicado que tenho nos olhos. Seria algo grave se não estivesse estacionado e pudesse ser resolvido simplesmente com o uso de óculos.

Apesar de ser um caso que precise de acompanhamento anual, não é nada que mude meu estilo de vida. Já uso óculos há mais de vinte anos e, pelo que a médica falou nos poucos instantes em que esteve comigo, terei de continuar a fazê-lo pelo resto da vida. A sonhada cirurgia corretiva para a visão é impossível para mim. Lentes de contato também não são recomendáveis. Então seguirei sendo o gordinho de óculos por anos e anos.

E por falar em gordinho, acredito que a essa altura o leitor já esteja familiarizado com a luta que travo não com a obesidade, mas com a sociedade que insiste em me taxar como doente por ser gordo. Para os que não sabem, lhes conto: eu não tenho nenhuma memória de ser magro. Talvez por nunca o ter sido. Minha mãe conta como meu ritmo de crescimento era rápido desde mais tenra idade. Alimentado apenas com leite materno, engordava um quilo por mês. Na escola além de ser um dos mais altos era sempre o mais pesado.

Em sua preocupação materna, e aconselhada por uma infinidade de médicos, minha mãe me acompanhou em incontáveis médicos e nutricionistas desde que eu me entendo por gente. Também, desde que me lembro, meu prato foi vigiado. Não poderia comer mais uma fatia de bolo, brigadeiros eram proibidos em casa. Não é preciso imaginar muito para desvendar o motivo da minha relação complicada com a alimentação.

Sendo vigiado por todos a todo tempo, desenvolvi algumas compulsões alimentares. Tomava refrigerante escondido, escondia fatias de bolo no armário do banheiro… e vivia numa relação de tentar comer o que me diziam ser certo e odiar cada momento. Rezava para que meu paladar mudasse eu comesse o que todo mundo comia. Nunca aconteceu.

Nunca fui o que chamavam de “bom de boca”. Ainda não o sou. Minha alimentação é altamente seletiva, e para conseguir comer o que gosto aprendi a cozinhar muito cedo. Não me furto a cozinhar pratos e mais pratos para as mesas festivas. Farofa de banana, salada waldorf, batas à duchesse, lombo de porco recheado com cebolas caramelizadas, empadão de frango, bacalhau espiritual, sobremesas do prosaico bolinho de fubá com goiabada à escultural charlote de maracujá com chocolate branco aromatizada com chá verde com jasmim e licor de laranja. Transformei a comida, que me foi ensinada a ser minha inimiga, em minha paixão.

Não como feijão. Detesto até olhar pro pobre grão. Minha mãe, zelosa e com medo do filho ficar fraco, me enfiava caldos e sopas goela abaixo. Eu orgulhosamente vomitava tudo logo em seguida. Só Deus sabe a quantidade de vezes que eu tenho que explicar para as pessoas que não como feijão e não vou morrer por causa disso. Existem outras fontes de ferro e afins. Como outras leguminosas com muito gosto, salada de lentilhas, ervilhas refogadas na manteiga, sopas…Acreditem, não me faltam nutrientes.

Sim, me recuso a comer peito de frango grelhado apenas com sal e pimenta, salada de alface guarnecida com azeite e um arroz branco. Minha salada recebe molhos saborosos assim como o peito de frango, e prefiro trocar o arroz por batatas coradas. Não como frituras, nem os cozidos os quais cresci rodeado. Por mais rica que considere a cultura de meu povo, me recuso a tê-la em minha cozinha.

Certa feita minha avó cozinhou um peba (Euphractus sexcinctus, para quem quer saber a cara da pobre criatura) para alguns convidados, totalmente cheia de repulsa pelo bicho que habita em cemitérios, prometeu quebrar a panela de barro quando o bicho fosse consumido. Assim o fez. Minhas panelas de aço são menos propensas ao ato dramático. Mas em minhas mãos não passam animais exóticos muito menos as vísceras de quem quer que seja.

Buchada, sarapatel, picado e o diabo a quatro são especialidades de minha irmã e meu pai que têm estômagos de hienas. Eu me recuso a sentar-me à mesa durante o espetáculo ruidoso em que consomem o tutano dos ossos dos mais variados animais.

Conto tudo isso para mostrar um pouco de mim para que o leitor entenda que sim, sou gordo, sempre fui, e não me imagino com outro corpo. Sou genuinamente feliz.

Contudo, e sempre se tem um contudo quando se é gordo. Já há algum tempo venho sofrendo com uma asma que me surgiu a beira dos 30 anos de idade. Fui a otorrino que disse que era uma asma alérgica, depois fui a um pneumologista, que deve ter sido o médico particular de Cleópatra, e que me prescreveu os remédios que eram populares na sua época de escola antes do dilúvio, e a fisioterapia mais ineficiente que estavam ao seu alcance.

No último ano fiz aulas de canto, pilates e o que mais pude, considerando que qualquer atividade me deixa tonto e arfando. Não tive grande melhora no meu quadro. E ao ter crises de falta de ar simplesmente sentado estudando, resolvi buscar um novo pneumologista.

Para quem não sabe, acredito que falo por toda pessoa gorda, irmos ao médico nos causa uma sensação semelhante a sermos mandados para a forca. Já sabemos de cor que seremos vistos como “gordos” antes de sermos vistos como pessoas. Se eu ganhasse um real por vez que me sugeriram uma bariátrica, hoje eu estaria morando em um lindo apartamento em Paris.

Nesta última semana não foi diferente. Como já estou acostumado com esse mundo hostil ao meu tamanho, acredito que já me acostumei. Ao chegar ao consultório do pneumologista para falar sobre asma, me foi sugerido, como sempre, a famigerada bariátrica. Ignorei a sugestão do médico e lhe solicitei que fizesse os exames para que fizéssemos o tratamento adequado.

Entendo que o acúmulo de gordura no meu abdome pode, sim, dificultar um pouco a respiração, até aumentar a intensidade do ronco. Mas como já conheço meu histórico de saúde o ignorei. Sei que minha glicose, colesterol, pressão arterial e tudo o mais, são absolutamente normais para a minha idade. Sempre foram. Meu peso não é, nesse quadro, motivo para o desenvolvimento de asma.

Ao contar isso, quase em tom de piada, para outras pessoas, me surpreendi com a reação delas. Será que esse médico sabe que muitas pessoas gordas, assim como eu, lutaram a vida toda com uma medicina hostil aos nossos corpos? Será que ele pensou que essa sugestão descabida poderia ser a gota d’água para alguém lidando com transtornos alimentares, depressão ou até algum tratamento de saúde que lhes fizeram ganhar peso?

Poderia encerrar aqui esse já longo artigo, mas o escrevi não para dizer à hoste de médicos incompetentes que nos rodeiam que melhorem e humanizem seus atendimentos, mas o fiz para agradecer às pessoas que nos veem como pessoas, complexas, saudáveis, felizes e que podemos ser felizes não apesar de nossos corpos, mas felizes com e por causa de nossos corpos. Obrigado a todos vocês que me lembram que sou humano, normal e posso ser feliz.

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