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Comprei Flores

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Por: Antônio Couras;

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Desde que fui ao supermercado e vi maços de flores a venda em comemoração ao Dia Internacional da mulher, fiquei com uma enorme vontade de adornar um vaso com essas joias que a natureza nos brinda até nos canteiros mais vadios das ruas mais esquecidas.

Mas mantendo as ordens da guardiã das finanças da casa, me restringi aos secos e molhados que constavam na lista de compras. Não estava no orçamento o alimento para os olhos, o olfato e o coração. Naquele dia, como em tantos outros na vida de tantas outras pessoas, o estômago se fez rei.

Os dias passaram, não muitos é verdade, e já no domingo as desavenças familiares fizeram com que eu ficasse totalmente fora do eixo.

Não sei se o leitor está familiarizado com o teatro grego, mas uma grande característica desse, é que as cenas mais fortes nunca acontecem no palco. Elas são informadas aos espectadores posteriormente. Um hábito, talvez percussor, da famosa frase do diretor de cinema Alfred Hitchcock de que “não há nada mais assustador que uma porta fechada”. O espectador nunca era forçado a ver assassínios ou mutilações. A eles chegavam apenas as notícias funestas pelas bocas dos personagens. Na minha família não é muito diferente. Raramente sou o ator em uma dessas obras, mas, ainda que contra minha vontade, me torno espectador delas.

Com o passar dos anos, na minha própria família, ocupei o lugar na plateia dessa tragédia cotidiana que se desenvolve diante de meus olhos. Para aqueles que não sabem, os heróis e musas com quem compartilho meus genes seriam personagens perfeitos em uma tragédia grega. Até a forma que se calam é estrondosa.

Eu, por outro lado, sempre fui averso às vozes alteradas, às discussões e desentendimentos. Uns dizem que a capacidade que tenho de antever os sentimentos e as reações dos outros é resultado de traumas de infância, outros dizem ser empatia, e outros, ainda, atribuem à mediunidade. Talvez Freud ou Kardec expliquem.

Fato é que a solidão e a quietude sempre foram minhas queridas companheiras. Passava horas e mais horas brincado com minhas vaquinhas de plástico numa fazenda com cercas feitas de palitos de picolé e cola quente. Cochos sempre cheios eram confeccionados com rolinhos de papel higiênico e até sobras de madeira viravam mesa e longos bancos para a casa da fazenda.

Ouvia Dorival Caymmi na voz de Carmen Miranda na vitrola, ou Mozart e Vivaldi num pequeno aparelho de som que acompanhava minhas leituras. A coitada da minha mãe recebia caríssimas ligações de fixo para celular com seu caçula aos prantos porque as irmãs estavam usando o grande aparelho de som para ouvirem suas terríveis músicas.

Ter o meu mundo sempre foi essencial na minha vida. As funestas ocasiões quando meus pais resolviam oferecer feijoadas em época de eleição eram meu purgatório pessoal. Tenho certeza que Maria Antonieta sentiu o mesmo pavor ao ver os revoltosos invadindo Versalhes que que eu senti ao ver aquela infinidade de carros lotados de pessoas com bandeiras e sons estrondosos invadindo meu jardim.

É verdade que o final dela foi mais cruel que o meu. Eu me escondi debaixo da mesa da sala de jantar. Apenas as pernas da mesa e uma fina parede de renda barata me separavam daquele mundo que me apavorava.

Outros momentos como aquele se repetiram na minha vida. Mais velho, descobri que além da ansiedade sofro de Agorafobia: um medo gutural de multidões. Em um dos episódios mais graves (que não havia nenhuma mesa em que pudesse me esconder debaixo), estudava ainda na antiga Faculdade de Direito na Praça João Pessoa, no Centro da cidade.

A essa altura, a sala em que estudava dava diretamente para a Praça, e lá estava eu observando a paisagem, quando ao longe se repete a cena apavorante de tantos anos antes: carros de som, centenas de pessoas e bandeiras tremulando.

Lembro-me de começar a descer as escadas, logo depois de seguir na calçada da Duque de Caxias rumo à Igreja de São Francisco. Quando dei por mim estava entrando no Tambiá Shopping. Crise de pânico com doses de amnésia. Acredito que depois daquela, nunca tive crise tão forte.

Com o passar do tempo busquei ajuda psicológica e, eventualmente, psiquiátrica. Mas, ainda hoje, vozes alteradas ou mesmo caras feias me tiram de prumo. Curioso que não tenho problema algum em me apresentar no palco de um teatro lotado ou falar para uma infinidade de pessoas (não que eu seja bom nisso, mas aí já é falta de talento, não fobia). Contudo o moer e remoer daqueles que me cercam me fazem querer, imediatamente, voltar para debaixo daquela mesa.

Nesta semana, depois de assistir na fila do gargarejo a mais uma tragédia da vida cotidiana, dormi mal, acordei cansado e mal humorado. Comi por obrigação, fiz minhas tarefas do trabalho, até que lembrei que eu sou um adulto e posso simplesmente entrar no meu carro e sair por aí.

Inicialmente usei como desculpa comprar um pedaço de fio para consertar uma luminária, mas logo depois me lembrei que o melhor antídoto para essas crises melancólicas ou ansiosas é fazermos algo que nos agrade e nos dê alegria.

Logo fui à minha doceria favorita, comi meus quitutes preferidos. A alma foi se acalmando com a presença das guloseimas. Ao sair, me deparei com uma floricultura. Ainda tinha algum dinheiro. Cruzei a rua, vi os poucos baldes com flores que sobraram do final de semana, e logo fui escolhendo as flores que queria para formar um arranjo alegre de flores do campo. Crisântemos grandes e pequenos, brancos, amarelo sol e vermelho Siena. Três girassóis para dar alegria.

Com os braços cheios de flores e a barriga de delícias fui para casa infinitamente mais calmo e mais parecido comigo mesmo. Ao chegar, prontamente fiz um grande arranjo para a mesa da sala de jantar, para sempre que passe ali possa ver a beleza das flores e sentir um pouco de sua alegria.

Estou grande e velho demais para me esconder debaixo da mesa, mas ainda preciso das minhas rotas de fuga, meus esconderijos e, principalmente, das minhas flores, das minhas docerias, dos meus passeios silenciosos.

Amo as pessoas, amo minha família, amo essa criação divina que é o ser humano, mas nunca soube, e talvez nunca aprenda, a viver muito próximo a ela. Que assim seja. O importante é sabermos que seja ao redor, em cima ou embaixo da mesa, todos podemos ser felizes. É só descobrir como, e fazer desses refúgios uma realidade.

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