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Consequências

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Por: Antonio Couras;

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Conversando com um amigo nos últimos dias comentávamos como pode ser assustador o fato de que a forma como lidamos com nosso dia a dia só depender de nós, e como o nosso futuro, em grande parte, também é obra unicamente nossa. Acredito que muito da nossa cultura ocidental reside na dicotomia entre criadores e suas criações. De Adão desrespeitando as ordens de seu criador no Jardim do Éden, ao monstro criado por Frankenstein.

Hoje, cotidianamente, somos obrigados a lidar com as consequências de ações há muito tomadas por pessoas muito distantes e há muito mortas. Seja a crise climática que se embasa na exploração não só dos combustíveis fósseis, que vêm movendo as revoluções industriais desde o século 18, bem como a exploração de terras, a expulsão de seus habitantes, e a destruição do meio ambiente há algumas centenas de anos.

Se formos debater apenas as coisas a nível de Brasil (o que não é pouca coisa), nossa história começa com a invasão de europeus em uma terra que era descrita por todos que aqui chegavam como sendo o próprio paraíso na Terra. Da chegada dos europeus em diante, a coisa foi por água abaixo. A forma de vida dos povos que aqui viviam em perfeita harmonia com a natureza, começou a ser abalada com a introdução do cultivo da cana-de-açúcar.

Antes disso, existia, sim, a agricultura, e pesquisas recentes começam a mostrar que o cultivo do seu entorno era muito mais amplo do que o que inicialmente se pensava.

Sempre ouvimos dizer que a agricultura de subsistência dos povos originários que habitavam o espaço entre a cordilheira dos Andes e o Oceano Atlântico se resumia a pequenas roças de mandioca, amendoim, batata, milho e tabaco. Contudo, hoje já se compreende que as matas que em que viviam essas comunidades eram verdadeiros jardins e pomares.

Ao contrário do modo de produção de seus vizinhos andinos, conhecidos por suas complexas técnicas agrícolas, os povos que habitavam as terras baixas da América do Sul se valiam do clima e relevo mais favoráveis para uma agricultura mais simples, mas nem por isso, inferior. Com as florestas suprindo boa parte da dieta dos indígenas, não havia a necessidade da sua substituição por áreas de cultivo muito grandes. A floresta, pelo contrário, era manejada para que fornecesse sempre boa caça e boa coleta. Desde o plantio de árvores que lhes eram úteis até a preservação das já existentes. Durante milênios o que acreditávamos, até há pouco tempo, serem matas “virgens”, na verdade eram jardins milenares das comunidades que aqui habitavam.

Ponto esse de extrema importância no debate ambiental. Apesar do discurso de parte da comunidade científica afirmar que o ser humano deve ser excluído da equação ambiental para que o meio ambiente possa voltar ao seu estado natural, o fato é que somos (ou pelo menos fomos outrora) parte integrante do ambiente que nos cerca.

Das minhas últimas leituras, uma que se destacou e que muito trata a respeito da forma como lidamos com as consequências dos nossos atos é a obra de 1818 de Mary Shelley, Frankenstein. Inicialmente tratada como uma obra de terror, para mim se resumiu a basicamente um rapaz pedante incapaz de lidar com as consequências de seus atos. E o que mais há de atual no mundo que termos que lidar com as consequências dos atos de “rapazes” pedantes?

Ao contrário do que o cinema faz parecer, o clímax do livro não está na criação do monstro em si. Isso se dá de maneira muito passageira logo no início do livro. Ao se deparar com o que havia feito, Victor Frankenstein, o jovem estudante de medicina que conseguiu dar a vida a um corpo, abandona sua criação e foge. A criatura, que pode ser considerada um dos personagens mais interessantes da literatura, dá-se conta de que existe, e precisando suprir as necessidades de um ser vivo, busca inicialmente, como um recém-nascido, que essas necessidades sejam supridas. E como aconteceu com todos nós, com o passar do tempo, essas demandas se tornam cada vez mais complexas.

Inicialmente, a alimentação, o manter-se aquecido, e, conforme passa o tempo, a necessidade de interação humana e de compreender seu papel no mundo, culminando com a percepção de que tem de tomar para si a responsabilidade de seu destino. O livro se estende com o monstro lidado de forma brutal com a sua existência e perseguindo seu criador que o colocou naquela condição de um monstro rejeitado por todos, incapaz de ver nele algo além da grotesca criação de um cientista inconsequente.

De forma brutal e violenta, o monstro compreende que sua condição se origina na negligência de seu criador, que o fez e o largou no mundo sem quaisquer ferramentas para enfrentar a realidade. E apesar de seus mais de 200 anos, a obra ainda reverbera nos dias de hoje quando vemos desde pais que não preparam seus filhos para o mundo, a uma casta de bilionários que agem como se o mundo fosse o tabuleiro de um jogo e toda a humanidade fosse seus piões. Podemos, ainda, ver como os “monstros” os países que foram explorados nos últimos séculos por meia dúzia de nações europeias, e tais nações as figuras que nos puseram nesse mundo.

O monstro de Mary Shelley entendeu a vingança como sendo a sua única missão no mundo depois do que seu criador o fez viver. Não acredito que essa seja a melhor solução para nós, criaturas do capitalismo, da margem global, de uma sociedade racista, machista e homofóbica. Mas é fundamental que entendamos a nossa condição de criaturas, que reconheçamos nossos criadores e que tomemos a dianteira das reações causadas na nossa criação. Não sou capaz de dizer que o que o monstro fez foi a melhor opção, mas acredito que podemos todos concordar que os nossos criadores precisam se responsabilizar por suas ações.

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